Em sessão plenária realizada no fim de fevereiro, o Tribunal de Contas de União (TCU) aprovou, por unanimidade, a Instrução Normativa (IN) nº 94/2024, que tem o objetivo de definir regras sobre a atuação da Corte de Contas em acordos de leniência1. A norma decorre de acordo de cooperação técnica (ACT) firmado com a Controladoria Geral da União (CGU), a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
Os acordos de leniência anticorrupção encontram previsão legal na Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) e são amplamente utilizados pelo Poder Público como um instrumento de combate à corrupção contra pessoas jurídicas que praticaram atos lesivos à Administração Pública. Com o acordo, que é celebrado exclusivamente com a CGU no âmbito do Poder Executivo Federal2, as empresas investigadas podem ter determinadas sanções isentas e outras atenuadas, desde que haja um comprometimento na colaboração com as apurações do fato ilícito.
A grande questão, contudo, versava sobre os efeitos que a celebração desse instrumento pela CGU poderia incorrer sobre as competências sancionatórias de outros entes, especialmente quando o acordo abrangesse os mesmos fatos analisados por diferentes órgãos, como o TCU.
Em seu voto, o ministro Benjamin Zymler pontuou que “a aplicação dessa sanção por outro órgão, ainda que mediante provas independentes, pode inviabilizar um acordo firmado por outro órgão, uma vez que impede a empresa signatária de celebrar outros contratos com o Estado”. E, por outro lado, chamou atenção para o fato de que a celebração de acordo pela CGU sem considerar provas já obtidas por outros órgãos “pode gerar o comportamento oportunístico
1 INSTRUÇÃO NORMATIVA – TCU Nº 94, DE 21 DE FEVEREIRO DE 2024. Disciplina a atuação do Tribunal de Contas da União decorrente do Acordo de Cooperação Técnica (ACT) celebrado, em 6 de agosto de 2020, com a Controladoria-Geral da União (CGU), a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), sob a coordenação do Presidente do Supremo Tribunal Federal, voltado ao combate à corrupção no Brasil, especialmente em relação aos acordos de leniência previstos na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, nos termos da Ordem de Serviço TCU nº 2, de 8 de março de 2021. 2 Ver art. 16 §10º, da Lei 12.846/2013.
de infratores de buscarem pactuar leniência com a CGU/AGU, quando estiverem em vias de condenação em outras esferas”. 3
Nesse cenário, em que muitas vezes o TCU não endossava os valores de ressarcimento previstos nos acordos de leniência celebrados pela CGU justamente por não abrangerem danos decorrentes de ilícitos apurados pela Corte de Contas4, foi firmado o acordo de cooperação técnica. A ideia é que houvesse uma cooperação eficaz entre os órgãos de investigação, visando facilitar uma colaboração abrangente e interinstitucional que incluísse a troca de informações sobre todos os delitos relacionados à empresa investigada.
A IN 94, desse modo, surge para regulamentar a atuação do TCU nos acordos de leniência, de forma a concretizar os ideais do ACT. Com a edição da norma, a Corte de Contas deverá ser municiada com todos os dados referentes aos acordos de leniência celebrados, incluindo a descrição detalhada das irregularidades e os montantes de ressarcimento envolvidos. A partir desse recebimento, o TCU abrirá processos internos, a fim de avaliar se as infrações admitidas já estavam sob a sua própria fiscalização anteriormente.
Essa troca abrirá um importante diálogo entre o TCU e a CGU, podendo o Tribunal enviar à Controladoria informações que serão, ou não, incluídas nos acordos de leniência. Além disso, informado de que uma negociação está pronta para ser assinada, o TCU terá um prazo de 45 dias para avaliar se os valores atendem aos critérios de apuração de danos ao erário. Caso positivo, a Corte de Contas considerará o passivo quitado e poderá decidir entre arquivar o processo, associá-lo a outra fiscalização ou simplesmente acompanhar o desenrolar do processo. Caso contrário, o processo seguirá em tramitação, podendo resultar em uma Tomada de Contas Especial5.
3 ACÓRDÃO Nº 239/2024 – TCU – Plenário. 4 Um exemplo que ilustra essa situação surgiu no julgamento relativo à construção da estrutura eletromecânica da usina de Angra 3, conforme registrado no Acórdão nº 483/2017 – TCU – Plenário, resultando na condenação das empresas envolvidas por práticas de superfaturamento. Em seu voto, o relator do processo ressaltou que “ao firmarem o acordo de leniência, as empresas não receberam quitação quanto aos prejuízos causados e tem plena consciência de que a precisarão arcar com esse dano”. Em consonância, as referidas entidades foram solicitadas a quitar a quantia de R$ 1,6 bilhão, especificamente relacionada a essa empreitada, além dos valores já estabelecidos previamente em acordo de leniência. 5 Ver arts. 6º, 9º e 10, da Instrução Normativa nº 94-TCU.
A IN 94 estipula, ainda, que o TCU não poderá empregar informações confidenciais providas pela CGU em detrimento da empresa ou de terceiros investigados até a formalização do acordo, salvo para apurar transgressões em curso. Na eventualidade de não se efetivar o acordo, fica vedado o uso das informações mencionadas.
Vale ressaltar que a Instrução em questão não exige a aprovação do TCU para a assinatura do acordo de leniência, permitindo que este seja firmado mesmo sem o aval do Tribunal em relação aos valores a serem restituídos. Essa ausência de concordância pode resultar na imposição posterior de pagamentos adicionais pela empresa, além dos acordados inicialmente, que digam respeito a danos incontroversos, como, por exemplo, decisões finais, assim entendidas sem possibilidade de alteração, em sede administrativa ou judicial, condenatórias de superfaturamento.
Fato é que a edição da IN 94 pelo TCU ressalta a importância de abordagens consensuais na resolução de questões de interesse público, particularmente no contexto dos acordos de leniência. Esta aprovação não apenas reforça a segurança jurídica, mas também fortalece a cooperação entre os órgãos de fiscalização e persecução, demonstrando um compromisso compartilhado com a integridade e transparência nas relações empresariais e governamentais.
A equipe de Direito Público do Bocater Advogados continuará acompanhando o tema e permanece à disposição para eventuais esclarecimentos.
André Uryn, sócio (auryn@bocater.com.br) Thiago Araújo, sócio (taraujo@bocater.com.br) Daniella Felix Teixeira, advogada associada (dteixeira@bocater.com.br)