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Securitização de créditos dos entes federativos: a bala de prata para a crise fiscal?

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Em maior ou menor proporção o fantasma da crise fiscal parece estar sempre à espreita, verdadeira pedra no caminho do desenvolvimento do país. As possíveis soluções para tanto costumam passar pelas tradicionais propostas de ajuste fiscal e pela redução da dívida, buscando formas de se aproximar e até alcançar o famoso déficit zero

Indo por outro caminho, a Lei Complementar 208/2024, publicada no último dia 3 de julho, ao possibilitar a cessão de direitos creditórios ao setor privado, trata a securitização de créditos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios como um possível remédio para diminuir a ameaça da crise fiscal no país. 

A denominada Lei da securitização tem por objetivo autorizar e regulamentar operações de cessão de direitos creditórios originados ou não de créditos tributários, inclusive os inscritos em dívida ativa, para todos os entes da Federação. Trata-se da possibilidade de securitizar – processo através do qual uma variedade de ativos financeiros ou não financeiros são vendidos, no mercado, a investidores na forma de títulos – esses créditos. 

Em termos práticos, os entes da Federação poderão transferir o direito de receber fluxos futuros de recursos para terceiros, que pagam uma quantia pela aquisição desse direito. Trata-se de uma ferramenta para refinanciar atividades econômicas de forma não convencional, com o intuito de reduzir custos de tomada de recursos e de intermediação com instituições financeiras.

O modelo de securitização desenhado pela Lei não é inteiramente novo na administração pública brasileira. Existem leis municipais e estaduais que regulamentam essa operação no seu âmbito, como, por exemplo, nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. As operações já realizadas nestes entes continuarão sendo regidas pelas respectivas leis, mas devem se beneficiar de maior segurança jurídica com a sanção da Lei Complementar 208/2024. 

A inovação dessa Lei Complementar, portanto, se dá pela autorização indistinta das operações de cessão de direitos creditórios nas três esferas de governo, desde que haja lei específica autorizativa.

Por meio da securitização se acredita ser possível movimentar ao menos parte do impressionante volume de recursos que constam como ativos governamentais classificados como dívida ativa, que em julho de 2023 acumulava R$2,7 trilhões

A principal mudança que a Lei Complementar promete gerar ataca não necessariamente esse valor trilionário, mas sim a enorme ineficiência estatal na recuperação desses créditos. Isso porque o que efetivamente importa para lidar com a crise fiscal é a recuperação dos créditos, para que os valores entrem em caixa e possam ser usados

Assim como todos os modelos de securitização de ativos governamentais, o objetivo principal da Lei é elevar a receita a curto prazo. No entanto, apesar do seu intuito, de institucionalizar a securitização no país como um antídoto para a crise fiscal, ela não está livre de críticas. Apesar de parte delas, apontadas na primeira versão do projeto de lei, terem sido solucionadas, alguns outros desafios permanecem. 

Ponto de crítica atual é o fato de a Lei Complementar não endereçar a questão do grau do custo financeiro em razão da operação, ou seja, o seu deságio. Isso porque, com a venda do direito de receber, será transmitida a entes privados a iniciativa de arrecadar diversos créditos e, com isso, se espera aumentar o volume de dinheiro em caixa, ao mesmo tempo em que o Estado perderá parte do valor.

Apesar das críticas, a Lei da securitização é, sem dúvida, promissora para aprimorar a eficiência, o cenário fiscal e os investimentos em infraestrutura no Brasil. Em relação ao deságio, considerando os índices de arrecadação catastróficos no país, a perspectiva é que o saldo final seja de muito mais recursos disponíveis. 

A equipe de Direito Público do Bocater Advogados continuará acompanhando a temática e seus desdobramentos em razão da relevância para o desenvolvimento do país, e está à disposição para esclarecimentos sobre o assunto.

 


1- BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Da crise fiscal à redução da dívida. João Paulo dos Reis Velloso, org. Dívida Externa e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990: 16-46. Trabalho apresentado ao Fórum Nacional: Idéias para a Modernização do Brasil, Rio de Janeiro, novembro 1988. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/239606734_Da_crise_fiscal_a_reducao_da_divida>.

2- CASTRO, Kleber Pacheco; AFONSO, José Roberto Rodrigues. Securitização de Recebíveis: Uma avaliação de créditos tributários e dívida ativa no setor público brasileiro. Vol. 9 No. 2 (2018): Economic Analysis of Law Review. Disponível em: <https://portalrevistas.ucb.br/index.php/EALR/article/view/8344>. Acesso em: 26. jun. 2024.

3- AFONSO, José Roberto; RIBEIRO, Leonardo. Securitizar créditos tributários, um primeiro passo. Conjuntura Econômica, Janeiro 2018. Disponível em: <https://periodicos.fgv.br/rce/article/download/76640/73480>. Acesso em: 26. jun. 2024.

4- Uma das críticas feitas ao primeiro projeto (PLS Nº 204 de 2016) era a clara subutilização de potencial da securitização. O PLS só contemplava os créditos objeto de parcelamentos (administrativos e judiciais), como os Programas de Recuperação Fiscal (Refis), por exemplo. Assim, o tamanho do ativo a ser securitizado era extremamente reduzido com relação ao universo da dívida ativa. Nesse sentido: CASTRO, Kleber Pacheco; AFONSO, José Roberto Rodrigues. Securitização de Recebíveis: Uma avaliação de créditos tributários e dívida ativa no setor público brasileiro. Vol. 9 No. 2 (2018): Economic Analysis of Law Review. Disponível em: <https://portalrevistas.ucb.br/index.php/EALR/article/view/8344>. Acesso em: 26. jun. 2024.

 

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