Boletim Bocater

CVM multa acusados por oferta irregular de valores mobiliários com investimento em criptomoedas

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Em decisão de 9 de junho de 2020, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM ) decidiu o PAS CVM Nº 19957.007994/2018-51, que envolvia a apuração de eventual oferta de valores mobiliários cuja natureza seria de contratos de investimento coletivo (CIC) sem a obtenção do registro ou sua dispensa, em infração ao disposto no artigo 19, §1º da Lei nº 6.385/1976, que teria sido cometida pela empresa e por seus sócios. Segundo a Superintendência de Relações com o Mercado e Intermediários (SMI) da CVM, a empresa “teria, primeiramente, ofertado em seu website, oportunidades de investimento no mercado Forex[1] em outros países e, em um segundo momento, em criptomoedas[2], sempre por meio de uma SCP [Sociedade em Conta de Participação]”[3].

O Diretor Relator, em seu voto, distinguiu três diferentes classes de criptoativos – payment token[4]utility token[5] e security token[6] , apontando que o critério diferenciador dessas modalidades se relaciona à sua função.

Esclareceu ainda que um criptoativo não consiste necessariamente em um valor mobiliário. Contudo, a depender das suas características e da forma como esses ativos são ofertados, podem caracterizar uma oferta pública de valores mobiliários que dependa de registro na CVM.

O Relator lembrou a importância do caso norte-americano que deu nome ao célebre Howey Test[7], amplamente adotado pela Securities and Exchange Comission (SEC) para a caracterização de um ativo como valor mobiliário.  A legislação brasileira, por sua vez, enunciou os elementos caracterizadores dos CIC no inciso IX, do artigo 2º, da Lei nº 6.385/1976, utilizando conceito semelhante ao adotado no Howey Test. Nesse sentido, o Relator expôs que a definição de CIC abrange “negócios com diversos formatos nos mais variados setores”, razão pela qual a destinação dos recursos captados ou o local do empreendimento não deve ser analisado de forma isolada, pois estes não são fatores essenciais para a caracterização de determinado ativo como valor mobiliário.

Esclareceu a natureza nitidamente instrumental do CIC e que determinado contrato pode vir a ser assim caracterizado mesmo se os recursos captados no País forem aplicados em outra jurisdição, ou na criação, desenvolvimento de atividades ou aquisição de ativos não sujeitos à disciplina da CVM.

Com base na lei e na jurisprudência da autarquia, elencou seis requisitos para a caracterização de um CIC: “(i) a existência de um investimento; (ii) a formalização do investimento em um título ou contrato […]; (iii) o caráter coletivo do investimento; (iv) o direito, decorrente do investimento, a alguma forma de remuneração; (v) que essa remuneração tenha origem nos esforços do empreendedor ou de terceiros que não o investidor; e (vi) que os títulos ou contratos sejam objeto de oferta pública”[8].

De acordo com a manifestação do Relator, no caso, os aportes foram inicialmente obtidos em dinheiro, mediante cartão de crédito, e aplicados no mercado Forex, e, posteriormente à stop order emitida pela CVM, as captações passaram a utilizar criptomoedas. Todos esses bens são suscetíveis de avaliação econômica e os investimentos foram feitos na expectativa de obtenção de retorno, conforme se pôde depreender dos anúncios veiculados na internet e colacionados aos autos do PAS[9].

Ainda segundo o Relator, o investimento era ofertado por meio de diversas modalidades de “cotas de participação”, com valores distintos, que geravam direito a rendimentos periódicos. Para formalizar o investimento, o investidor celebrava um “contrato social de sociedade em conta de participação”, atuando a empresa acusada como sócia ostensiva, com a obrigação de distribuir parte dos lucros auferidos aos sócios ocultos (investidores), na proporção de suas cotas.

A natureza coletiva do investimento sobressaiu em razão do contrato de sociedade ter sido ofertado indistintamente, de forma padronizada, possibilitando sua aquisição por diversos investidores. O Relator destacou, ainda, que “a remuneração oferecida tinha origem nos esforços do empreendedor ou de terceiros, pois decorria da atuação da [empresa acusada] como gestora discricionária dos recursos aportados pelos investidores”. Assim, e considerando que os esforços de terceiros constituem critério predominante para a caracterização dos CIC, independentemente de uma participação expressiva, ou não, por parte do investidor, o Relator concluiu que a oferta pública do ativo se encontrava submetida à competência da CVM, em linha com a jurisprudência da Autarquia.

Na dosimetria da pena, o Relator considerou que seria adequada a aplicação de multa a ser fixada com base no valor da operação irregular. Contudo, tendo em vista a inexistência nos autos de informação quanto ao volume financeiro efetivamente captado pelos acusados, votou pela aplicação da penalidade em valor absoluto, conforme o inciso I, do §1º do art. 11 da Lei nº 6.385/1976, seguindo precedente[10] da CVM.

O Colegiado seguiu o voto do Relator, decidindo pela condenação dos acusados ao pagamento de multa no valor individual de R$ 250.000,00. A decisão está sujeita a recurso ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN).

Maria Isabel do Prado Bocater, sócia sênior (isabel@bocater.com.br)
Maurício Gobbi dos Santos, advogado (msantos@bocater.com.br)
Daniel Chedier Barreira Maurell, estagiário (dmaurell@bocater.com.br)
Bruna Muller dos Santos Rosa, estagiário (brosa@bocater.com.br)

  1. “As operações no chamado mercado de Forex têm como característica a expectativa de variação do valor de troca entre duas moedas.” Trecho do voto do Diretor Relator Gustavo Machado Gonzalez no PAS CVM Nº 19957.007994/2018-51, julgado em 9 de junho de 2020.
  2. “O termo criptomoedas, por sua vez, vem sendo utilizado para designar ativos representados digitalmente com base em tecnologias descentralizadas e algoritmos criptográficos com finalidade de simular funções de moeda (meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor). A criptomoeda é usualmente referida como uma das três espécies de criptoativos, junto com o utility token e o security token. Importada da língua inglesa, a expressão ‘token’ designa a representação do ativo digital. Em uma tradução livre, pode ser compreendida como sendo um ‘cupom digital’”. Trecho do voto do Diretor Relator Gustavo Machado Gonzalez no PAS CVM Nº 19957.007994/2018-51, julgado em 9 de junho de 2020.
  3. Por meio de consultas realizadas por investidores à área técnica, foi verificada, em 2018, a existência, no website da Companhia, de oportunidades de investimento em mercados estrangeiros por meio do mercado de ForEx de forma irregular. Dada tal constatação, foi emitido pela Autarquia um ‘Stop Order’, determinando a cessação da atividade da Companhia em momento prévio à instauração do PAS. Contudo, em consultas subsequentes de cidadãos à área técnica, foi reportada a continuidade das ofertas de investimento pelo acusado, tendo sido migrado seu foco de atuação do mercado de ForEx para transações envolvendo criptomoedas.
  4. Tokens de criptomoedas ou payment token, os quais são utilizados pela sua capacidade de pagamento, tal qual uma moeda digital com reserva de valor, funcionando como meio de pagamento ou valor de transferência.
  5. Tokens de utilidade, ou, utility tokens, representam um token que confere direito a acessar um aplicativo, utilizar um serviço ou um produto específico que necessita da infraestrutura utilizada pela tecnologia Distributed Ledger Technology (tecnologia de descentralização informacional, utilizada, a exemplo, no Blockchain), permitindo, inclusive, vender ou alugar tal direito de utilização.
  6. Tokens lastreados em ativos, ou, security tokens, são aqueles que possuem como objeto primário a tokenização de direitos de voto ou de retornos financeiros sob determinada ação ou instrumento financeiro, seja em debêntures, contratos de câmbio, contratos de opção de ações, participação societária em companhias, taxas de performance, títulos de dívida, derivativos, contratos de cessão de direito futuro, assim como paridade de valores inerentes a ativos (pode-se inclusive atribuir ao valor de uma commodity ou à uma moeda soberana específica), entre outros.
  7. O Howey Test analisa o respectivo ativo ou instrumento financeiro para determinar se este é configurado como um valor mobiliário, levando em consideração: (i) se o objeto se trata de uma modalidade investimento; (ii) se existe a expectativa de lucro em dado investimento; (iii) se o investimento foi alocado de forma direta ou indireta em uma companhia; (iv) se há razoável expectativa de lucros derivado dos esforços de terceiros, seja de forma direta ou indireta; e (v) se os lucros advindos do investimento, de forma parcial ou integral, independem da atuação do investidor.
  8. Nos termos do voto do ex-Diretor da CVM, Marcos Barbosa Pinto, nos autos do PAS CVM RJ 2007/1159318, julgado em 22.01.2008.
  9. “Nessa perspectiva, parece-me que a melhor forma de interpretar a referência a “quaisquer outros contratos ou títulos”, constante do inciso IX, é com foco no “quaisquer outros” e não no “contrato ou título”. O modo pelo qual o investimento foi formalizado, no mais das vezes, será relevante sobretudo como meio de prova.” Trecho do voto do Diretor Relator Gustavo Machado Gonzalez no PAS CVM Nº 19957.007994/2018-51, julgado em 9 de junho de 2020.
  10. Voto da Diretora da CVM, Flávia Perlingeiro, no PAS CVM no RJ2016/8381 (19957.008445/2016-32), julgado em 18.02.2020.

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