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CVM entende que futecoins não se enquadram na categoria de valores mobiliários

O Club de Regatas Vasco da Gama formulou consulta à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em 3 de julho de 2020, sobre o possível enquadramento, como valores mobiliários, de ativos digitais que representariam direitos creditórios, eventuais e futuros, que serviriam de lastro para os denominados Futecoins, tokens objeto de oferta ao público via a plataforma MBEXA questão central reside em saber se o clube que contribuiu para a formação de jogadores de futebol pode transformar os direitos a ele pertencentes quando da negociação do passe do jogador (Direitos Creditórios de Solidariedade) em criptoativo, a ser negociado no mercado.

 

Partindo desta assertiva, o clube indagou se o emitente deste criptoativo, a ser oferecido publicamente aos investidores, estaria sujeito à regulação e fiscalização pela CVM, na categoria de valor mobiliário (um contrato de investimento coletivo) e, sendo o criptoativo oferecido publicamente, estaria sujeito aos registros para emissão e distribuição pública. Para fundamentar a sua pergunta, o clube idealizou um modelo de negócios e o submeteu à apreciação da autarquia, questionando sobre o possível enquadramento, como valor mobiliário, de criptoativos – Futecoins – objeto de oferta ao público via a plataforma de negociação MBEX do Mercado Bitcoin.

 

As Futecoins consistiriam em ativos digitais representativos de Direitos Creditórios de Solidariedade pertencentes ao clube que contribuiu para a formação de jogadores de futebol, quando da negociação do seu passe, correspondentes a até 5% do valor da transação. A operação pretendida pelo Club de Regatas Vasco da Gama envolvia as seguintes etapas: (i) cessão dos direitos creditórios para o criador das Futecoins (ii) a criação das Futecoins registradas em Blockchain na plataforma MBEX; e (iii) a sua disponibilização para negociação na plataforma MBEX.

 

À luz das peculiaridades da operação, havia a dúvida se tal ativo poderia ser considerado um valor mobiliário, atraindo a competência da CVM e o regime jurídico relacionado à sua oferta ao público, especialmente no que diz respeito à exigência de registro e de divulgação de informações, ou se não se submeteria ao crivo da autarquia, para fins de cumprimento do art. 2º, inciso IX da Lei nº 6.385/76. A Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE) conduziu a análise da matéria.

 

Dispõe o art. 2º da Lei nº 6.385/76 que “São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei: (…) IX – quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.”

 

Conforme a definição acima, os títulos ou contratos de investimento coletivo apresentam os seguintes elementos: (i) modalidade de investimento coletivo; (ii) em que haja fornecimento de recursos (dinheiro ou bens suscetíveis de avaliação econômica); e (iii) esteja presente a gestão dos recursos por parte de terceiros, não controlando o investidor o negócio no qual seus recursos foram empregados.[1]

 

Examinando a matéria, a SRE concluiu que, apesar de estarem presentes, (i) a intenção de promover uma oferta pública; (ii) um investimento a ser realizado proveniente de um contrato; e (iii) a expectativa de lucro, ainda assim as Futecoins não poderiam ser consideradas um valor mobiliário, dado que inexistiria um empreendimento comum.

 

Constatou-se, ainda, a ausência da figura do empreendedor (um agente econômico coordenador de uma atividade econômica de risco), ou mesmo de um terceiro, cujos esforços buscariam tornar o investimento rentável, o que descaracterizaria as Futecoins como valor mobiliário.

 

O entendimento da SRE se justifica porque o eventual ganho obtido pelos adquirentes das Futecoins seria proveniente da performance de três partes desconectadas de qualquer atividade empresarial: (i) o jogador; (ii) o clube alienante, que detém o passe e (iii) o clube adquirente do passe; todos envolvidos na negociação que enseja a remuneração devida ao clube formador e ao seu cessionário, o investidor, titular da Futecoin.

 

À luz do exposto, a área técnica da CVM concluiu que as Futecoins não se enquadrariam no conceito de valor mobiliário, partindo da premissa de que os Direitos Creditórios de Solidariedade que serviriam de lastro para a emissão das Futecoins terão sempre, por objeto, jogadores já vendidos a outros clubes na data da emissão do criptoativo.

 

O fundamento central da CVM para afastar a existência de valor mobiliário que atrairia a sua competência foi a constatação de inexistência de um investimento coletivo subjacente às Futecoins, estando, assim, excluídos de sua esfera de regulamentação e fiscalização. Em outras palavras, tais criptoativos podem ser negociados livremente no mercado independentemente de qualquer anuência da CVM.

 

Em 2015, a CVM decidiu um caso semelhante: ”paneletas”, uma “moeda virtual” que permitiria que o investidor adquirisse parte do direito econômico do atleta profissional de futebol. Entendendo que se tratava de valor mobiliário, em razão da existência de contrato de investimento coletivo oferecido publicamente, a CVM determinou a paralisação da oferta.

 

A diferença essencial entre os dois casos seria a seguinte: “as Paneletas eram lastreadas em direitos econômicos de jogadores que se encontravam registrados com o clube cedente e, utilizando-se de uma definição bastante ampla de “empreendimento”, os resultados esportivos do clube cedente influenciariam na negociação dos seus jogadores”.[2]

 

Vale ressaltar, ainda, que a consulta em exame também foi encaminhada para apreciação da Procuradoria Federal Especializada e da Superintendência de Relações com o Mercado e Intermediários, sendo que as duas áreas corroboraram o entendimento da SRE: as Futecoins não constituem valores mobiliários, estando excluídos da esfera de regulamentação e fiscalização pela CVM.

João Laudo de Camargo, sócio sênior (jcamargo@bocater.com.br)

Beatriz Sampaio G. de Lucena, advogada (blucena@bocater.com.br)

  1. EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Feitas. Mercado de Capitais – Regime Jurídico. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 55.
  1. Item 4.1.4 da Consulta

Autores

João Laudo de Camargo e Beatriz Sampaio G. de Lucena

Área de atuação

Mercado de Capitais

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