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CVM decide pela ilegalidade de proposta de conversão de ações preferenciais em ordinárias

No dia 04 de dezembro de 2020, o Colegiado da CVM, em reunião extraordinária, decidiu, por maioria, que a proposta do Conselho de Administração de determinada companhia para conversão das ações preferenciais em ordinárias, na proporção de 1 PN para 0,8 ON, era irregular por (i) não apresentar justificativa que fundamentasse a relação de troca proposta e (ii) não ter havido prévia aprovação da alteração da cláusula estatutária referente à inconversibilidade das ações preferenciais.

I – Antecedentes 

O caso teve início em 14 de outubro de 2020, com a publicação de dois editais de convocação de assembleias: um para Assembleia Geral Extraordinária (AGE) e outro para Assembleia Geral Especial de Acionistas Titulares de Ações Preferenciais (AGEsp), ambas a serem realizadas no mesmo dia e com o objetivo de deliberar sobre a conversão da totalidade das ações preferenciais de emissão da Companhia em ações ordinárias, visando “adequar as práticas de governança da Companhia, uniformizando o tratamento entre seus acionistas e seus direitos”.

No entanto, os editais de convocação das assembleias não previam como item de pauta a deliberação sobre a alteração da cláusula estatutária referente à inconversibilidade das ações preferenciais.[1]

Com a publicação do Manual de Participação e Proposta da Administração para a AGEsp, no qual constava que a conversão se daria na proporção de uma ação preferencial para cada 0,8 ação ordinária, alguns acionistas questionaram, entre outros pontos, o fundamento da regra de conversão. Diante disso, o Conselho de Administração optou por cancelar a convocação das assembleias para reexaminar a matéria.

Subsequentemente, a Companhia publicou fato relevante no qual informava que o Conselho de Administração havia autorizado a convocação de AGE e AGEsp para deliberar sobre a conversão de ações preferenciais em ações ordinárias, novamente na razão de 0,8 ação ordinária para cada ação preferencial convertida, e sobre a migração da Companhia para o segmento especial de governança corporativa do Novo Mercado da B3. O pedido de ingresso no Novo Mercado seria, assim, realizado apenas quando houvesse a aprovação da conversão das ações. Também, com o objetivo de realizar uma transição gradual para o Novo Mercado, o Conselho aprovou a submissão de pedido de adesão da Companhia ao segmento especial de governança corporativa do Nível 2 da B3.

A ata de reunião do Conselho de Administração indicou os motivos da manutenção dos termos da proposta inicial: (i) historicamente o mercado atribui, de forma consistente, sobrevalor às ações ordinárias de emissão da Companhia, quando comparadas com as ações preferenciais, (ii) a atribuição de relação de conversão 1 PN para 1 ON, no caso concreto, representaria um prêmio para as ações preferenciais e significaria uma diluição injustificada dos titulares das ações ordinárias; e (iii) a razão de conversão era compatível com as cotações históricas das ações.

As novas assembleias foram convocadas tendo como pauta principal a deliberação sobre a conversão das ações preferenciais em ordinárias, sendo que a pauta da AGE passou a contemplar “a consequente alteração do estatuto social da Companhia, conforme constante da proposta da administração, de modo a adequá-lo à conversão das ações preferenciais de emissão da Companhia em ações ordinárias de emissão da Companhia”.

II – A decisão da CVM

Inconformados com a manutenção da proposta de conversão, um grupo de minoritários preferencialistas pediu à CVM a interrupção do curso de prazo de convocação das assembleias,[2] argumentando existirem “ilegalidades de diversas ordens que maculam a Proposta submetida à deliberação pelas AGE e AGEsp da Companhia desde seu nascedouro, passando por defeitos informacionais e até mesmo relativas aos seus termos e condições propriamente ditos”.

II.1 – O parecer da SEP

Em seu parecer sobre o caso, a Superintendência de Relações com Empresas (SEP) entendeu que a proposta apresentada pela Administração não se afigurava transparente, devidamente justificada e acompanhada de todas as informações relevantes para a tomada de uma decisão refletida pelos seus acionistas. Para a SEP, a relação de conversão das ações proposta não se baseava em um critério objetivamente verificável, e era pautada em “pressupostos eminentemente genéricos, de que as ações ordinárias e preferenciais são intrínseca e historicamente precificadas de forma diversa pelos participantes do mercado, e de que a relação de troca não pode ser arbitrada de forma a beneficiar um grupo específico, em detrimento dos demais”, significando, portanto, uma violação ao art. 17 da Instrução CVM nº 481/2009.[3] Com base nesse dispositivo, a área técnica sustentou que a Companhia deve fornecer, no mínimo, as informações indicadas no Anexo 17 da referida Instrução, dentre as quais a descrição e a fundamentação, pormenorizada, das alterações estatutárias propostas,[4] o que abrange as informações acerca do critério adotado para embasar a relação de conversão sugerida, bem como a justificativa para a sua adoção.

Além disso, a SEP, ao analisar as cotações de ações ordinárias e preferenciais, constatou que a relação histórica observada resultaria em uma relação de substituição em torno de 0,85 ON para 1 PN, tendo como base a data da divulgação do fator de conversão proposto pela Administração da Companhia, que se deu por ocasião da divulgação das propostas para a AGE e AGEsp, e considerando os períodos de 30, 60 e 90 dias que antecederam essa divulgação.[5]

Por último, em relação à manifestação da área técnica, destaca-se o entendimento de que não seria possível a realização de uma AGE (ou AGEsp) para deliberar, primeiro pela conversão das ações e, posteriormente, pela alteração do estatuto social para permitir a conversão. Assim, seria necessário, primeiro deliberar sobre a alteração do estatuto social para exclusão da previsão de inconversibilidade das ações preferenciais em ações ordinárias para, então, deliberar pela efetiva conversão, o que poderia ser feito no mesmo conclave.[6]

Desse modo, a SEP entendeu ter sido descumprido o disposto no § 3º do art. 135 da Lei das S.A.[7] e os arts. 11[8] e 17 da Instrução CVM nº 481/2009, relativos à disponibilização e completude dos documentos para a realização da AGE e AGEsp. Como resposta ao pleito dos investidores da Companhia, a SEP sugeriu que o Colegiado ou (i) interrompesse por até 15 dias o curso do prazo de antecedência da convocação da AGE e da AGEsp, a fim de conhecer e analisar as propostas a serem submetidas às assembleias e, sendo o caso, informar à Companhia, até o término da interrupção, as razões pelas quais entende que a deliberação proposta às assembleias viola dispositivos legais ou regulamentares, ou (ii) informasse, sem a necessidade de interromper o prazo de realização das AGE e AGEsp, que as propostas a serem submetidas às assembleias violavam os dispositivos legais e regulamentares mencionados acima.

II.2 – A decisão do Colegiado

Na reunião do Colegiado realizada no dia 04 de dezembro de 2020, os diretores Gustavo Gonzalez e Alexandre Rangel entenderam que o fato de a Companhia não ter apresentado justificativa mais pormenorizada acerca da relação de substituição proposta para a conversão que seria submetida à assembleia não autorizava a interrupção do seu prazo de convocação. Para os diretores, a prerrogativa de interrupção do curso do prazo de antecedência de convocação de AGE, prevista no inciso II do § 5º do art. 124 da Lei das S.A.,[9] tem por objetivo conferir prazo adicional para que o Colegiado conheça e analise as propostas submetidas à assembleia e, se for o caso, opinar se “a deliberação proposta à assembleia viola dispositivos legais ou regulamentares”. Assim, entenderam não ser possível formar uma convicção acerca da legalidade ou ilegalidade da proposta de conversão submetida à assembleia, à luz das informações disponíveis e considerando o procedimento exíguo de análise de um pedido de interrupção, concluindo que não estavam presentes os pressupostos legais para que a CVM exercesse a prerrogativa prevista no citado dispositivo legal.

O Diretor Henrique Machado, por sua vez, acompanhou a manifestação da SEP e sustentou que não se tratava de analisar o mérito da relação de troca constante da proposta da administração, mas sim de verificar se a proposta preenchia os requisitos de legalidade à luz do art. 135, § 3° da Lei das S.A. c/c com os arts. 2º,[10] 11 e 17 da Instrução CVM nº 481/09. Ou seja, que não se tratava de “discutir os parâmetros de conversão submetidos à assembleia”, mas sim de “analisar a adequação legal do conjunto informacional que deve necessariamente subsidiar a proposta da administração e a decisão dos acionistas”. Nesse sentido, o mencionado Diretor salientou que, no caso, “a proposta da administração não justifica minimamente o critério que fundamentou a relação de troca constante da ordem do dia, o que não permite aos acionistas alcançarem a mesma conclusão”. Assim, em seu entendimento, “a falha informacional não permite a tomada de decisão consciente, representa vício da deliberação proposta à assembleia, viola os dispositivos legais e regulamentares supracitados e autoriza a atuação prudencial da Autarquia”, nos termos do art. 124, § 5º, II, da Lei das S.A.

A Diretora Flávia Perlingeiro acompanhou o entendimento da área técnica, nos termos do Relatório da SEP, bem como as ponderações do Diretor Henrique Machado.

O Presidente Marcelo Barbosa, por último, observou que, por não atender a requisito essencial previsto tanto em lei quanto na regulação da Autarquia, “a proposta de conversão de ações sujeita a deliberação pela assembleia não pode ser considerada aderente seja à lei, seja à regulamentação”, por estar ausente a necessária justificativa, cabendo, então, reconhecer e declarar sua irregularidade.

Assim, o Colegiado, por maioria, acompanhando a manifestação da SEP, deliberou, nos termos do art. 124, § 5º, II, da Lei das S.A., pela ilegalidade das propostas a serem submetidas às assembleias, constantes do primeiro item da ordem do dia da AGE e da ordem do dia da AGEsp, tendo decidido, igualmente, pela desnecessidade de interrupção do curso do prazo de convocação, para conhecer e analisar as propostas.

III – As consequências da decisão e as últimas atualizações do caso

Em consequência da referida decisão do Colegiado da CVM houve o cancelamento da convocação da AGEsp. A AGE, contudo, foi realizada, uma vez que havia outros itens na ordem do dia a serem deliberados, tendo sido aprovado o seguimento do processo de adesão da Companhia ao Nível 2 da B3. Subsequentemente, foi realizada nova AGE que deliberou apenas sobre os procedimentos para a adesão da Companhia no Nível 2 da B3, inclusive com a consequente ampla reforma do estatuto social para adaptá-lo aos requisitos do Regulamento de Listagem do Nível 2, sem, contudo, revogar o dispositivo estatutário referente à inconversibilidade das ações preferenciais, pois, neste caso, seria necessária também a realização de AGEsp.

IV – Pontos de Atenção

Apesar de no atual Plano Bienal de Supervisão Baseada em Risco da CVM (2021 – 2022) não contemplar como risco prioritário “ocorrência de irregularidades nas propostas da administração” como constou dos últimos Planos (2015/2016, 2017/2018, 2019/2020), este caso evidência a importância que os administradores da companhias abertas, em especial os membros do Conselho de Administração, devem ter em bem convocar as assembleias, apresentando suas propostas com informações e documentos fornecidos aos acionistas com conteúdo verdadeiro, completo e consistente, redigidos em linguagem clara, objetiva e concisa; sem induzir o acionista a erro.

Quando for convocada assembleia para reformar o estatuto, a companhia deve fornecer, no mínimo, cópia do estatuto social contendo, em destaque, as alterações propostas e relatório detalhando a origem e justificativa das alterações propostas e analisando os seus efeitos jurídicos e econômicos.

Havendo alteração nas preferências, vantagens ou condições de resgate ou amortização de ações preferenciais, o material disponibilizado para os acionistas deve, pormenorizadamente: (i) descrever as alterações propostas e (ii) apresentar sua fundamentação e o impacto sobre os titulares das ações objeto da alteração.

 

João Laudo de Camargo, sócio sênior (jcamargo@bocater.com.br)
Maurício Gobbi dos Santos, advogado (msantos@bocater.com.br)
Luiz Matheus Tavares Pompeu, estagiário (lpompeu@bocater.com.br)

  1. Art. 5º, §2º, alínea “e” do Estatuto Social da Companhia: “Artigo 5º. (…) Parágrafo Segundo. As ações preferenciais terão as seguintes características e vantagens: (…) e) as ações Preferenciais serão irresgatáveis e inconversíveis em ações Ordinárias.” Como se trata de alteração das características das ações preferenciais, a Lei n° 6.404/76 prevê, em seu art. 136, § 1°, a necessidade de aprovação de matéria por titulares de mais da metade de cada classe de ações preferenciais prejudicadas, reunidos em assembleia especial convocada pelos administradores e instalada com as formalidades desta Lei.
  2. Art. 124, § 5º, inciso II, da Lei nº 6.404/1976 (“Lei das S.A.”) e art. 3º da Instrução CVM nº 372/02.
  3. “Art. 17. Sempre que uma assembléia de acionistas, geral ou especial, for convocada para deliberar sobre a criação de ações preferenciais ou alteração nas preferências, vantagens ou condições de resgate ou amortização das ações preferenciais, a companhia deve fornecer, no mínimo, as informações indicadas no Anexo 17 à presente Instrução.
  4. Conforme o Anexo 17 da Instrução CVM nº 481/2009, havendo alteração nas preferências, vantagens ou condições de resgate ou amortização de ações preferenciais, deve-se: a) descrever, pormenorizadamente, as alterações propostas, b) fundamentar, pormenorizadamente, as alterações propostas, c) fornecer análise pormenorizada do impacto das alterações propostas sobre os titulares das ações objeto da alteração e d) fornecer análise pormenorizada do impacto das alterações propostas sobre os direitos dos titulares de outras espécies e classes de ações da companhia.
  5. Também, a SEP citou casos anteriores de companhias abertas em que houve a conversão de ações preferenciais em ordinárias que, ao contrário, foram apresentados os critérios objetivos que justificaram a razão da conversão.
  6. A SEP pontuou que “não vislumbramos óbice a que ambas as propostas sejam objeto de deliberação no mesmo conclave. Entretanto, devem constar de itens específicos da ordem do dia, observando-se que, uma vez rejeitada a proposta de alteração do Estatuto Social da Companhia para fins da exclusão da previsão de inconversibilidade das ações preferenciais em ações ordinárias, restará prejudicada a deliberação acerca da conversão das ações em si.”
  7. “Art. 135. A assembléia-geral extraordinária que tiver por objeto a reforma do estatuto somente se instalará em primeira convocação com a presença de acionistas que representem 2/3 (dois terços), no mínimo, do capital com direito a voto, mas poderá instalar-se em segunda com qualquer número.

(…) § 3° Os documentos pertinentes à matéria a ser debatida na assembléia-geral extraordinária deverão ser postos à disposição dos acionistas, na sede da companhia, por ocasião da publicação do primeiro anúncio de convocação da assembléia-geral.”

  1. “Art. 11. Sempre que a assembléia geral for convocada para reformar o estatuto, a companhia deve fornecer, no mínimo, os seguintes documentos e informações: I – cópia do estatuto social contendo, em destaque, as alterações propostas; e II – relatório detalhando a origem e justificativa das alterações propostas e analisando os seus efeitos jurídicos e econômicos.”
  2. “Art. 124. A convocação far-se-á mediante anúncio publicado por 3 (três) vezes, no mínimo, contendo, além do local, data e hora da assembléia, a ordem do dia, e, no caso de reforma do estatuto, a indicação da matéria. (…) § 5° A Comissão de Valores Mobiliários poderá, a seu exclusivo critério, mediante decisão fundamentada de seu Colegiado, a pedido de qualquer acionista, e ouvida a companhia: (…) II – interromper, por até 15 (quinze) dias, o curso do prazo de antecedência da convocação de assembléia-geral extraordinária de companhia aberta, a fim de conhecer e analisar as propostas a serem submetidas à assembléia e, se for o caso, informar à companhia, até o término da interrupção, as razões pelas quais entende que a deliberação proposta à assembléia viola dispositivos legais ou regulamentares.”
  3. “Art. 2º As informações e documentos fornecidos aos acionistas nos termos desta Instrução:

I – devem ser verdadeiros, completos e consistentes; II – devem ser redigidos em linguagem clara, objetiva e concisa; e III – não devem induzir o acionista a erro.”

Autores

João Laudo de Camargo, Maurício Gobbi dos Santos e Luiz Matheus Tavares Pompeu

Área de atuação

Mercado de Capitais

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