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Colegiado da CVM aplica a business judgment rule em decisão

Enfoca-se neste artigo a regra de conduta imposta ao administrador de uma companhia, consubstanciada no dever de exercer suas atribuições para “lograr os fins e no interesse da companhia” (art. 154 da Lei das SA), vis a vis a adoção da teoria da business judgement rule, que garante que, respeitados alguns requisitos sobre deveres de conduta, o administrador não será responsabilizado pelo julgador, caso as decisões sejam ruins para a companhia ou para seus acionistas.

Examinaremos a decisão proferida, em dezembro de 2019, pelo Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), no julgamento do Processo Administrativo Sancionador, instaurado para apurar a responsabilidade (i) dos membros do Conselho de Administração de companhia aberta por desvio de finalidade e conflito de interesses, e (ii) dos Diretores de Relação com Investidores da Companhia (DRIs) por falhas no cumprimento do dever de informar e (iii) de suas controladoras direta e indireta, por abuso do poder de controle, tendo por objeto a aquisição pela Companhia de participações acionárias minoritárias em 4 sociedades controladas.

O cerne da discussão, no processo sancionador em tela, refere-se à regularidade da aquisição, pela Companhia, de ações de emissão de sociedades controladas, possuídas pelo Acionista A (Aquisição A), quando (i) comparado com o preço pago pela aquisição de ações de emissão das mesmas controladas, mas de titularidade do Acionista B (Aquisição B) e (ii) considerados os interesses das Controladoras. Dois aspectos tiveram destaque: a racionalidade e a comutatividade da Aquisição A.

Especificamente quanto à atuação dos membros do Conselho de Administração da Companhia, a área técnica da CVM, relativamente à Aquisição A, entendeu que esta “teria sido realizada em condições prejudiciais à Companhia e desviando-se do interesse social, tendo como objetivo desonerar suas Controladoras de obrigações previamente assumidas perante o Acionista A, no âmbito da Opção de Venda, que assegurava [ao mesmo] o direito de vender suas ações à [Controladora Indireta], cuja obrigação de compra era garantida pela [Controladora Direta] da Companhia”.

A Superintendência de Relações com Empresas (SPE), no seu relatório, considerou que as condições da Opção de Venda não eram somente um balizador de preço, mas o próprio racional da Aquisição A. Se o preço por ação da Aquisição B tivesse sido praticado na Aquisição A, chegar-se-ia à conclusão de que, proporcionalmente, a Companhia pagou, pelas participações do Acionista A, preço equivalente a 3,2 vezes o valor que teria pago se as tivesse negociado nas mesmas condições contratadas com o Acionista B. E isto indicaria um sobrepreço. No entendimento da SEP, a Aquisição A, pela Companhia, consistiu na verdade, em mera transferência da obrigação das Controladoras para a Companhia, que arcou com o ônus de uma obrigação que não era sua.

No que se refere à conduta dos Conselheiros de Administração da Companhia, a SEP entendeu que a Aquisição A “teria sido realizada em condições prejudiciais à Companhia e desviando-se do interesse social, tendo por objetivo desonerar suas controladoras de obrigações previamente assumidas perante o [Acionista A]”. Assim, concluiram que os conselheiros teriam atuado com desvio de finalidade ao aprovarem a operação em condições não equitativas, em detrimento da Companhia.

Inicialmente, a Diretora e relatora Flávia Perlingeiro destacou que, muito embora a aprovação da Aquisição A constitua decisão negocial, “não exime os Conselheiros acusados de terem sua decisão analisada no mérito, com a adoção de um padrão de revisão mais rigoroso, uma vez que não se trata de acusação por falta de diligência e que está em discussão justamente o alinhamento da decisão ao melhor interesse da Companhia, especialmente tendo em vista o reflexo da [Aquisição A] na extinção da (Instrumento Particular de Outorga de Opção de Subscrição de Ações) PUT, da qual derivavam obrigações relevantes das Controladoras”.  E sintetizou: “não se trata de aferir se a [Aquisição A] foi realizada em termos ideais para a [Companhia], mas sim de julgar se foi realizada em seu interesse e não para eximir suas Controladoras das obrigações decorrentes da PUT”.

Nesse sentido, a Relatora destacou que “o exame de mérito da decisão negocial pela CVM é justificável, portanto, quando o processo decisório estiver eivado de irregularidade, o que importa na indisponibilidade da aplicação da chamada business judgment rule, ou se, ainda que regular, o seu resultado não refletir termos razoavelmente compreensíveis e racionais, permitindo concluir pela atuação com desvio de finalidade ou apontando para uma atuação desleal dos administradores ”

Embora tenha reconhecido haver justificativas estratégicas a demonstrar a utilidade e a relevância das Aquisições, o que inclusive foi levado em consideração na definição da pena, a Relatora destacou que, quando analisadas em separado as Aquisições A e B, “o preço da [Aquisição A] mostra-se desarrazoado, especialmente quando comparado ao da [Aquisição B], que serve como importante elemento de referência, ainda que não seja tomado como único aspecto para concluir pela ocorrência de irregularidades na aprovação da [Aquisição A]”.

Ainda na visão da Relatora, os membros do Conselho de Administração da Companhia, conhecedores dos termos da opção de venda (que assegurava ao Acionista A, desejoso em desinvestir, o direito de vender as suas participações acionárias à Controladora Indireta, cuja obrigação de compra era garantida pela Controladora Direta), “aprovaram a [Aquisição A] mesmo a preço economicamente desarrazoado”. Entendeu, ainda, que os conselheiros “deixaram prevalecer o propósito de exoneração das obrigações das Controladoras, em detrimento da própria Companhia. Assim, o conjunto de todos os acionistas da [Companhia], incluindo os minoritários, acabou arcando com o ônus de um preço excessivamente alto que era oponível à [Controladora Indireta] e não à Companhia”.

Concluindo, a Relatora votou pela condenação dos conselheiros da Companhia ‒ que aprovaram, por unanimidade, a Aquisição A ‒ à multa pecuniária individual no valor de R$350 mil, pela infração ao disposto no art. 154[1] da Lei n° 6.404/76 .

Já o então Diretor Carlos Rebello votou pela absolvição dos acusados. Fundamentou o seu voto em uma análise pautada em juízo de racionalidade, destacando que, em situações de contratação, não seria ideal a utilização de um juízo de razoabilidade, tendo em vista as inúmeras circunstâncias a serem consideradas em uma negociação. Nesse sentido, entendeu que as condições pactuadas na Aquisição A seguiram um racional econômico e que “os elementos constantes dos autos não me permitem concluir que os Conselheiros teriam atuado para favorecer as Controladoras em detrimento do interesse da Companhia”.

O posicionamento adotado pelo Diretor Henrique Machado foi também no sentido da absolvição. Em sua visão, “deve o regulador conter-se e abster-se da tentação de substituir os administradores e realizar, a posteriori, julgamento de mérito sobre qual teria sido a melhor decisão para a companhia”. Destacou ainda que, em linha com a jurisprudência da CVM, ao avaliar as decisões negociais tomadas por administradores de companhias abertas, deve ser adotada a regra da business judgment rule. Assim, posicionou-se, no processo em tela, no sentido de que os administradores atuaram de forma desinteressada, refletida e informada.

Por último, o Presidente Marcelo Barbosa ressaltou que a análise do presente processo difere de outras já feitas pelo Colegiado, uma vez que, neste caso, a atuação dos administradores seria “visivelmente irreconciliável com o interesse social”. Acompanhando a manifestação da Relatora, votou pela condenação dos conselheiros, entendendo que, apesar da decisão ter sido tomada no interesse social da Companhia, este não teria sido o fator preponderante na tomada de decisão.

Constatando-se o empate na votação, prevaleceu a decisão de absolvição dos conselheiros, com respaldo na aplicação do art. 55, parágrafo único, da Instrução 607/2019[2]: “Em caso de empate, deverá prevalecer a posição mais favorável ao acusado”.

Há, além disso, um aspecto relevante, no caso em estudo, a ser registrado: “não obstante haver certa complementaridade entre o art. 153 e o art. 154 da LSA, o primeiro trata do ’modo’ e o segundo trata da ’finalidade’.

Importante destacar, quanto à matéria em exame, o bem lançado posicionamento do Diretor Gustavo Gonzalez:

“Quando se avalia apenas diligência, o foco da discussão é o procedimento. Nesse sentido, as decisões da CVM que buscaram sistematizar a business judgment rule brasileira indicam que o referido teste não é aplicável a decisões interessadas, nem aos casos em que existem evidências de fraude ou de má-fé. Nota-se, portanto, que prévia ou concomitantemente à análise procedimental pode-se verificar se existem indícios dos problemas que previnem a aplicação da regra da decisão negocial.

Já o artigo 154 exige que o administrador adote não ‘apenas uma conduta formalmente de acordo com os preceitos da LSA, mas, sim, materialmente em linha com os seus preceitos’. Por tal motivo, o exame de desvio de poder não se esgota em uma análise acerca da independência e do interesse do administrador. Com efeito, para que o artigo 154 cumpra com a sua finalidade, a revisão em casos de suspeita de desvio requer um olhar diferente e uma consulta mais abrangente, que busque apurar se atos praticados pelos administradores, ainda que formalmente corretos, buscavam de fato atingir fins ilegais, contrários à ordem pública ou aos interesses da companhia.

Essa abrangência deve, contudo, ser delimitada com temperança, sob pena de se transformar uma obrigação de meio em uma de resultado”[3].

Em conclusão, cabe ressaltar quanto à decisão, aqui enfocada, que o entendimento atual dos membros do Colegiado da CVM está dividido em correntes distintas, quanto à aplicação da business judgement rule: ao ver de dois diretores, tendo a deliberação sido tomada de forma refletida, informada e desinteressada, não deve o regulador questionar a regularidade da conduta dos administradores. No entender dos dois outros diretores, pode o regulador, ainda assim, examinar se a deliberação tomada foi no interesse social, tendo um dos julgadores considerado que a operação de aquisição realizada foi “visivelmente irreconciliável com o interesse social.”

João Laudo de Camargo, sócio (jcamargo@bocater.com.br)

Maurício Gobbi dos Santos, advogado associado (msantos@bocater.com.br)

Bruna Muller Santos Rosa, estagiária (brosa@bocater.com.br)

 

[1] Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.

 

§ 1º O administrador eleito por grupo ou classe de acionistas tem, para com a companhia, os mesmos deveres que os demais, não podendo, ainda que para defesa do interesse dos que o elegeram, faltar a esses deveres.

 

§ 2° É vedado ao administrador:

 

a) praticar ato de liberalidade à custa da companhia;

 

b) sem prévia autorização da assembleia-geral ou do conselho de administração, tomar por empréstimo recursos ou bens da companhia, ou usar, em proveito próprio, de sociedade em que tenha interesse, ou de terceiros, os seus bens, serviços ou crédito;

 

c) receber de terceiros, sem autorização estatutária ou da assembleia-geral, qualquer modalidade de vantagem pessoal, direta ou indireta, em razão do exercício de seu cargo.

 

§ 3º As importâncias recebidas com infração ao disposto na alínea c do § 2º pertencerão à companhia.

 

§ 4º O conselho de administração ou a diretoria podem autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais.

 

[2] A Instrução nº 607/19 introduz no âmbito do processo administrativo sancionador da CVM o princípio do favor rei do Direito Penal: havendo empate no julgamento do Tribunal, prevalecerá à decisão mais favorável ao réu, consoante o art. 615 do Código de Processo Penal”. A justificativa para a adoção desta constou do Edital de Audiência Pública nº 02/2018 da CVM: “Em linha com as preocupações expostas anteriormente no sentido de preservar as garantias processuais dos acusados, sugerimos que o princípio do in dubio pro reo, seguido recentemente pelo Colegiado no PAS CVM 2014/10556, seja expressamente consagrado como regra nos processos administrativos sancionadores da CVM.

 

[3] Trecho da respectiva manifestação de voto no PAS CVM nº RJ2013/11703, j. em 31.07.2018.

Autores

João Laudo de Camargo, Maurício Gobbi dos Santos e Bruna Muller Santos Rosa

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