Boletim Bocater

A proteção do ato regular de gestão deve consolidar-se com um princípio jurídico?

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A edição da Resolução nº 23 da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (PREVIC), em 2023, representou um marco extremamente relevante para a atuação do Estado em relação às atividades desenvolvidas pelas entidades fechadas de previdência complementar (EFPC).

O normativo consolidou e aprimorou mais de 40 normas, antes esparsas, trazendo uma abordagem sistêmica e, consequentemente, mais transparente à atuação do Estado em suas funções estabelecidas no art. 3º da Lei Complementar nº 109/2001, que dispôs sobre o regime de previdência complementar.

Especificamente em relação ao regime disciplinar, cabe à PREVIC a fiscalização das EFPC e a repressão a condutas ilegais, por meio de severas penalidades administrativas.

O Decreto nº 4.942/2003 regulamenta o processo administrativo para apuração de responsabilidade por infração à legislação no âmbito do regime da previdência complementar, prevendo, entre os arts. 63 e 110, tipos penais específicos.

Subsidiariamente, deve-se ater às disposições contidas na Lei nº 9.784/1999, que disciplina, de forma geral, o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal.

Desse conjunto normativo, identificam-se diversos princípios orientadores da ação da PREVIC, cujas definições são objeto de constante aprimoramento em decorrência da edição de normas infralegais e de avanços doutrinários e jurisprudenciais.

Como uma derivação do Princípio da Legalidade, não é de hoje que se reconhece a grande relevância do que sugerimos denominar “Princípio da Proteção do Ato Regular de Gestão”, pois condensa um conjunto de valores que que irradiam como orientação para a interpretação de um amplo espectro normativo do regime de previdência complementar.

O conceito de ato regular de gestão possui, desde 1976, referência expressa pela Lei nº 6.404/1976 (Lei das S.A.), em seu art. 158, abaixo transcrito:

Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:

I – dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;

II – com violação da lei ou do estatuto.

(…)

A rigor, os contornos legais da definição do ato regular de gestão se extraem, como já mencionado, do Princípio da Legalidade. A legalidade ampla determina a liberdade das pessoas privadas realizarem tudo aquilo que a lei não proíba. Já a legalidade estrita determina que o administrador público somente pode fazer aquilo que a lei autoriza.

A conjunção desses dois vetores à realidade de ambientes com forte regulação e fiscalização estatal e que se fundamentam na gestão profissional de recursos ou interesses de terceiros, justifica a necessidade de uma conceituação própria.

Ao fim, o que se pretende é que o conjunto de responsabilidades que recaem sobre os gestores não impeçam o pleno desempenho daquelas atividades inerentes ao seu mandato fiduciário.

Por essa razão, a Resolução do Conselho de Gestão da Previdência Complementar-CGPC nº 13/2004, já, há duas décadas, estabelece a proteção do ato regular de gestão ao autorizar o “custeio da defesa de dirigentes, ex-dirigentes, empregados e ex-empregados da EFPC, em processos administrativos e judiciais, decorrentes de ato regular de gestão” (art. 22).

Ocorre que, somente agora, após longo (e talvez necessário) amadurecimento da doutrina e jurisprudência relativa aos processos administrativos sancionadores no âmbito da previdência complementar fechada, o Princípio da Proteção do Ato Regular de Gestão foi explicitado.

Destacamos, nesse sentido, o art. 230 da Resolução PREVIC 23/2023:

Art. 230. A conduta caracterizada como ato regular de gestão não configura infração à legislação no âmbito do regime de previdência complementar, operado pelas entidades fechadas de previdência complementar.

  • 1º Considera-se ato regular de gestão, nos termos do parágrafo único do art. 22 da Resolução CGPC nº 13, de 2004, aquele praticado por pessoa física:

I – de boa-fé, com capacidade técnica e diligência, em cumprimento aos deveres fiduciários em relação à entidade de previdência complementar e aos participantes e assistidos dos planos de benefícios;

II – dentro de suas atribuições e poderes, sem violação da legislação, do estatuto e do regulamento dos planos de benefícios; e

III – fundado na técnica aplicável, mediante decisão negocial informada e refletida.

  • 2º Para avaliação do ato regular de gestão, devem ser consideradas as informações e dados disponíveis à época em que a decisão foi tomada ou o ato praticado, competindo à entidade fechada de previdência complementar manter registro dos documentos que fundamentaram a decisão ou o ato.
  • 3º Não se caracterizará o ato regular de gestão quando demonstrada, a qualquer tempo, a existência de ato ilícito ou de simulação que afastem quaisquer dos requisitos de que trata o §1º.

(Grifou-se.)

Em linha com o Princípio da Legalidade, o ato regular de gestão será aquele, portanto, praticado de boa-fé, dentro das atribuições e poderes atribuídos pela legislação e regramentos internos, mediante “decisão negocial informada e refletida”.

A prática do ato regular de gestão, que deve ser registrada e comprovada documentalmente, afasta a infração à legislação da previdência complementar.

A introdução da explicitação do Princípio da Proteção do Ato Regular de Gestão representa avanço da segurança jurídica aos gestores das EFPC e transparência aos procedimentos de aplicação de penalidade pela PREVIC, sem, contudo, significar uma inovação no regime jurídico.

Merece especial destaque a explicitação de proteção do ato “fundado na técnica aplicável, mediante decisão negocial informada e refletida” (grifou-se).

O parâmetro da decisão negocial informada e refletida já vinha sendo adotada pela PREVIC e Câmara de Recursos da Previdência Complementar-CRPC, nos últimos anos.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), seguindo o padrão norte-americano, também, há mais tempo, já adota a tradicional teoria conhecida como Business Judgement Rule (ou regra da decisão negocial). Por esse entendimento, o regulador não pode substituir-se aos administradores e não deve avaliar o mérito das suas decisões em si, mas sim a adequação do processo decisório.

Assim, uma vez observados os requisitos de decisão informada, refletida e desinteressada, a regra da decisão negocial não poderia determinar uma punição para o administrador de uma sociedade anônima quanto a eventuais efeitos negativos de sua decisão. Ou seja, a percepção quanto à adequação do processo decisório não pode ser influenciada pelo resultado positivo ou negativo verificado com a execução da referida decisão.

Esse é o entendimento extraído do voto proferido pela Diretora-Relatora Maria Helena Santana no PAS CVM nº RJ2005/0097, julgado em 15 de março de  2007, transformado num dos leading cases sobre o tema:

Mas, mais que isso, creio que considerações sobre o mérito de decisões de negócio, em geral, extrapolam o papel do regulador, em sua tarefa de revisão da legalidade dos atos dos administradores de companhia aberta. (…). Mas a análise da CVM sobre determinado ato de gestão conta com uma grande vantagem, que não seria justo permitir que fosse usada em prejuízo dos administradores: ela é feita de posse da informação sobre o resultado que o ato acarretou. Se a revisão da legalidade de atos de administração, portanto, puder avançar em aspectos do mérito das decisões, estaremos correndo o risco de reduzir o dinamismo de nossas companhias abertas, pois estará sendo incentivada uma postura extremamente avessa ao risco por parte dos seus administradores.

(Grifou-se.)

Respondendo ao questionamento trazido no título: a nosso ver, devemos consolidar a existência do Princípio da Proteção do Ato Regular de Gestão. A sua explicitação conflui com os anseios do segmento de previdência complementar, no sentido de promover a um só tempo, a crescente valorização do trabalho dos auditores da PREVIC, que se orientaram por parâmetros próprios do atividade estatal vinculada, e a proteção dos gestores das EFPC, que atuem de forma adequada ao mandato fiduciário neles investidos.

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