Boletim Bocater

Evolução da jurisprudência do STF a respeito da prescrição do ressarcimento de danos ao Poder Público

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O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em sessão virtual de julgamento do Recurso Extraordinário 636.886, com repercussão geral (tema 899), que é prescritível a ação de ressarcimento ao erário baseada em decisão de Tribunal de Contas em processo de tomada de contas especial. O acórdão, redigido pelo Ministro Alexandre de Moraes, foi publicado no último dia 24 de junho.

 

Essa foi a última das deliberações de uma sequência de casos tratando do tema da prescrição do ressarcimento de danos ao erário enfrentada pelo Supremo nos últimos anos. A decisão marca uma superação da jurisprudência histórica da Corte, que, desde 2008, quando do julgamento do Mandado de Segurança nº 26.210-9[1], entendia pela imprescritibilidade, de acordo com interpretação feita a partir do art. 37, § 5º da Constituição Federal[2].

 

Essa reviravolta só foi possível a partir de uma evolução paulatina dos casos julgados ao longo dos anos pelo STF, sendo suscitada, em três oportunidades, repercussão geral[3] sobre a abrangência da previsão contida no § 5º, do art. 37 da Constituição.

A primeira repercussão geral foi tratada no Recurso Extraordinário 669.069 (tema 666), em 2016. Na ocasião, o STF foi chamado a se manifestar a respeito da prescrição do ressarcimento de danos ao Poder Público no contexto de um acidente automobilístico que resultou em dano à União. A decisão, relatada pelo falecido Ministro Teori Zavaski, considerou prescritível o ressarcimento fundado em ilícitos civis, entendendo o Tribunal que o comando do art. 37, §5º da Constituição não abrange danos ao erário decorrentes de ilícitos de natureza civil não tipificados como de improbidade administrativa[4].

 

Dois anos depois, o STF apreciou o Recurso Extraordinário 852.475 (tema 897), sobre a questão da prescrição do ressarcimento de danos ao erário oriundos de atos de improbidade. Naquela oportunidade, o relator, Ministro Alexandre de Moraes, defendeu a prescritibilidade, mas prevaleceu a tese do Ministro Luís Roberto Barroso, que votou pelo reconhecimento da imprescritibilidade apenas dos atos dolosos de improbidade administrativa[5].

 

Especificamente em relação ao Tribunal de Contas, com a publicação do acórdão do Recurso Extraordinário 636.886, é possível extrair duas conclusões principais do posicionamento do STF.

 

Inicialmente, o Ministro Alexandre de Moraes entendeu que não cabe ao Tribunal de Contas a apuração de dolo. Com efeito, o processo de contas é voltado unicamente para a apuração de prejuízo, mas não para a identificação do elemento volitivo, em que há vontade, presente na conduta do agente público ou privado, tal como ocorre no âmbito do processo judicial proposto pelos órgãos competentes com fulcro na Lei nº 8.429/92, no qual há produção de prova nesse sentido.

 

Além disso, quanto ao prazo, foi adotado o entendimento da pertinência de aplicação do art. 174 do Código Tributário Nacional (CTN) combinado com a Lei de Execução Fiscal, que fixa em cinco anos o prazo para a cobrança do crédito fiscal e para a declaração da prescrição intercorrente. Vale esclarecer que esse prazo não se volta ao período máximo para apuração do débito e de responsáveis, mas tão somente para a execução do acórdão no âmbito do Tribunal de Contas, isto é, a satisfação do erário após a conclusão do julgamento pelo TCU e a constituição do título executivo.

 

Esse, portanto, é o atual estado da jurisprudência do STF a respeito da prescrição do ressarcimento de danos ao Poder Público, sendo importante ressaltar, contudo, que algumas questões atualmente debatidas nos processos junto aos Tribunais de Contas deixaram de ser abordadas, notadamente quanto ao termo inicial da prescrição, das causas de sua interrupção e do próprio prazo.

 

Nos últimos anos tem se verificado um esforço para a identificação da legislação aplicável à questão da prescrição dos processos do TCU, tendo em vista a omissão existente na Lei nº 8.443/92. (Lei Orgânica do TCU).

 

Alguns precedentes do próprio STF, capitaneados pelo Ministro Luís Roberto Barroso, entenderam que seria correta a aplicação da Lei nº 9.873/99, que estabelece em cinco anos o prazo para a prescrição da ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta. Todavia, existem alguns problemas nessa interpretação. A própria lei dirige-se ao poder de polícia[6] e exclui a sua aplicação aos servidores públicos. Apesar de estabelecer de forma clara que o termo inicial é a data do fato, as causas de interrupção são genéricas, pois a lei refere-se a qualquer ato inequívoco de apuração.

 

O Tribunal de Contas, que ingressou nos autos do Recurso Extraordinário 636.886 como amicus curie, posicionou-se pela exiguidade do prazo de cinco anos. Para o TCU, o correto, no cenário de omissão da Lei nº 8.443/92 (Lei Orgânica do TCU), seria a aplicação do disposto no Código Civil, que traz a previsão geral de prazo máximo de 10 anos de prescrição, no caso de inexistência de outra previsão.

 

A decisão do STF no Recurso Extraordinário 636.886 ocorreu em caso que tratava de execução de decisão preclusa do TCU, por isso utilizou-se como fundamento da decisão o Código Tributário Nacional e a Lei de Execução Fiscal. No entanto, o prazo para a instauração do processo na Corte de Contas não foi enfrentado. Apesar disso, o Supremo possui entendimento consolidado na Súmula 150 de que o prazo de execução é o mesmo da ação de conhecimento.

 

Ainda há um certo caminho para que o STF pacifique a questão da prescrição no âmbito do Tribunal de Contas da União. Há de se verificar, nos próximos meses, qual será a reação do TCU a respeito desse último julgamento do STF. Nos últimos dias, a Corte de Contas sinalizou que pretende manifestar-se sobre a questão da improbidade administrativa em seus julgados, de modo a configurar, no caso de atos dolosos, a imprescritibilidade, na linha do que ficou definido no tema 897 do STF. Nesse sentido, a ementa do recente acórdão 1482/2020-Plenário do TCU[7]:

“Responsabilidade. Débito. Imprescritibilidade. Omissão no dever de prestar contas. Dolo. Improbidade administrativa. Configurada a ausência injustificada de prestação de contas como ato doloso de improbidade administrativa tipificado no art. 11 da Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), a ação que pretende obter o ressarcimento ao erário dos recursos cuja regularidade não foi demonstrada é imprescritível, conforme decidido pelo STF no RE 852.475 (Tema 897)”.

 

A equipe de Direito Público do Bocater Advogados continuará acompanhando os desdobramentos do tema e os próximos passos na relação institucional entre STF e TCU.

André Uryn, sócio (auryn@bocater.com.br)

Thiago Araújo, sócio (taraujo@bocater.com.br)

Fernando Ferreira, advogado (fferreira@bocater.com.br)

  1. Naquela oportunidade, o Supremo Tribunal Federal julgava caso que tratava justamente de ressarcimento de danos em favor do erário com fundamento em decisão do Tribunal de Contas da União. A decisão, relatada pelo Min. Ricardo Lewandowski, tomada por larga maioria, foi no sentido da imprescritibilidade.
  2. “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…) § 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”.
  3. Repercussão geral é um instrumento de natureza processual que tem por objetivo definir uma questão de direito que, por sua importância jurídica, política, econômica ou social, transcende os limites do caso concreto em julgamento, afetando a estabilidade do sistema jurídico como um todo. Ao proclamar que determinada questão de direito tem repercussão geral, o STF paralisa o julgamento de todos os processos em todas as instâncias do Poder Judiciário que estejam lidando com a mesma questão. Após o julgamento da repercussão geral, com a fixação da tese de direito, os processos retomam o seu curso, aplicando a tese fixada pelo STF.
  4. O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, negou provimento ao recurso extraordinário, fixando a seguinte tese: “É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil”.
  5. O Tribunal, por maioria, deu parcial provimento ao recurso para afastar a prescrição da sanção de ressarcimento e determinar o retorno dos autos ao tribunal recorrido para que, superada a preliminar de mérito pela imprescritibilidade das ações de ressarcimento por improbidade administrativa, aprecie o mérito apenas quanto à pretensão de ressarcimento, fixando a seguinte tese: “são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”.
  6. A questão é controversa. A Lei nº 9.873/99 trata da prescrição da ação punitiva da Administração Pública no exercício regular do seu poder de polícia. Poder de polícia, de acordo com a definição do art. 78 do Código Tributário Nacional, é a “(…) atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”. O problema é que não se pode afirmar com segurança que o TCU, ao apreciar contas, exerça algum tipo ou espécie de poder de polícia, na linha da definição contida no art. 78 do CTN. Ao tratar do TCU, a Constituição, em seu art. 71, usa os verbos “apreciar”, “julgar” e “fiscalizar” contas, dando a entender que não se trata de atividade da Administração Pública que “(…) limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato (…)”. No entanto, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário 636.886, o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, fez importante afirmação no sentido de considerar aplicável o prazo de cinco anos da Lei nº 9.873/99, por entender que o TCU exerceria sim “um poder de polícia administrativa lato sensu”: “considerando que a atividade de controle externo, a cargo do Poder Legislativo e auxiliado pelo Tribunal de Contas, é exercida, mutatis mutandis, como poder de polícia administrativa lato sensu, cujo objeto é agir preventiva ou repressivamente em face da ocorrência de ilícito que possa causar ou cause prejuízo ao erário, entendo aplicável o prazo quinquenal punitivo para os casos de ressarcimento aos cofres públicos, salvo em se tratando de fato que também constitua crime, ocasião em que a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal”. Seja como for a questão é polêmica, não tendo sido pacificada nem na doutrina, nem nos tribunais.
  7. Cabe ressaltar que aludida decisão foi proferida em 10.06.2020, ou seja, antes da publicação do Acórdão do Recurso Extraordinário nº.: 636.886. Portanto, a Equipe de Direito Público seguirá acompanhando os próximos julgamentos da Corte de Contas para atestar se tal posicionamento será mantido futuramente ou revisto à luz da tese fixada no tema 899.

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