Boletim Bocater

CVM julga processos administrativos envolvendo práticas de layering

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Em sessão de julgamento virtual no último dia 02 de junho, o Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) teve nova oportunidade de analisar processos administrativos sancionadores versando sobre a prática de layering[1], configurando o tipo ilícito manipulação de preços, previsto na Instrução CVM nº 08/79 (ICVM nº 08/79)[2].

Foram julgados quatro processos, que tiveram como resultado a condenação dos acusados pela prática mencionada ilícita, com a aplicação de penalidades de multa pecuniária distintas, diante das particularidades de cada caso.

As práticas conhecidas como layering spoofing decorrem de inovações tecnológicas, que viabilizaram o uso de algoritmos automatizados de alta velocidade para o rápido envio de ordens por operadores de alta frequência (high frequency traders). Em ambos os casos há a inserção de ordens nos dois lados do livro de ofertas sem a intenção de execução em momento posterior, com a finalidade de interferir no processo de formação do preço de determinado ativo, e induzir outros investidores à sua negociação. A diferença entre o layering e o spoofing é que, no primeiro caso, há a emissão de ordens para criar faixas de preço diferenciadas, e, no segundo, há ordens em quantidades expressivas de um ativo que não são condizentes com aquelas já registradas no livro de ofertas. Tão logo as operações desejadas se concretizem, as ordens fictícias são imediatamente canceladas.

Em três dos processos julgados, a penalidade pecuniária aplicada ao acusado foi fixada em R$ 450.000,00, sendo que, no outro processo julgado, a multa foi correspondente a 1,5 o valor da vantagem econômica auferida, devidamente atualizada pelo IPCA desde a data das irregularidades, totalizando o montante de R$ 246.615,60.

Para a aplicação das penalidades acima mencionadas, diversos fatores foram considerados pelo Colegiado, acompanhando os fundamentos dos votos lançados pelo Diretor Gustavo Gonzalez, relator de todos os processos em julgamento.

O Diretor Relator, inicialmente, ponderou que a informação é o principal bem jurídico objeto de tutela no mercado de capitais. O regime de transparência imposto pela regulamentação, bem como a vedação às práticas dos ilícitos previstos na ICVM nº 08/79, evidenciam a preocupação do legislador com a qualidade das informações disponíveis no mercado, justamente em razão do papel relevante que estas desempenham na formação de preços e na decisão de investimentos por diversos participantes de mercado.

O Diretor Gustavo Gonzalez também teceu críticas quanto aos parâmetros utilizados pela acusação, em conjunto com a BSM Supervisão de Mercados (empresa integrante do Grupo B3), para a identificação de potenciais irregularidades atribuídas aos acusados, ressaltando a necessidade de constante aperfeiçoamento dos critérios a serem adotados[3].

Nos casos julgados, os parâmetros utilizados foram: a) a inserção de, no mínimo, 4 ofertas artificiais no intervalo de 10 minutos com o intuito de influenciar investidores; b) acompanhado de colocação de oferta no lado oposto do livro; c) a execução do negócio pretendido; e d) o cancelamento de todas as ofertas artificiais após a etapa anterior[4].

Embora os parâmetros adotados tenham sido os mesmos do primeiro caso de layering[5] julgado pela CVM, o Diretor Relator entendeu que estes deveriam ser revistos, por três razões básicas.

Em primeiro lugar, porque esses critérios não permitiriam concluir que as operações supostamente ilícitas teriam o poder de influenciar a cotação do ativo. Ofertas mais volumosas do que as constantes nos níveis de preços iniciais são mais aptas a influenciar a decisão dos investidores no livro de ofertas, como ocorreu no precedente de spoofing em que a acusação se pautou por ordens que fossem 1,8 vezes maiores que a soma das demais ofertas no mesmo lado do livro, até o 3º nível de preço, e ofertas 6 vezes maiores que a média do mercado nos 3  pregões anteriores. Nos casos em exame, não houve semelhante lógica na metodologia aplicada para a identificação de layering. Consequentemente, da forma como os parâmetros foram definidos, diversas ofertas foram, a princípio, englobadas na amostragem resultante dos filtros de detecção, independentemente de sua ilicitude.

Em segundo lugar, o intervalo de 10 minutos seria demasiadamente longo para a obtenção do resultado desejado. Além do mais, esse critério iria de encontro ao entendimento do Colegiado de que tais práticas, seja de layering ou de spoofing, são caracterizadas justamente pelo curtíssimo intervalo de tempo em que as ordens artificiais permanecem no livro de ofertas.

Em terceiro lugar, o critério adotado para identificar eventuais ocorrências de layering não prevê um tempo mínimo de permanência da oferta antes do seu cancelamento para que haja suspeita de artificialidade. Quanto a esse ponto, o Diretor Relator fez questão de frisar que não se trata de estabelecer um critério objetivo, o que seria incompatível com a redação da própria norma, mas apenas de empregar uma metodologia que conferisse maior certeza quanto ao uso de artifício em cada operação identificada como potencialmente irregular. E dado que a natureza dos ilícitos de layering spoofing pressupõe tanto a curta permanência de uma ordem no livro de ofertas quanto uma alta taxa de cancelamento, a amostragem colhida e a definição de parâmetros pela acusação deverão ser sempre criteriosas.

Diante das razões arroladas, o Diretor Gustavo Gonzalez concluiu que os parâmetros empregados para aferição do ilícito de layering, nos referidos processos, enfraqueceram a tese acusatória por não permitirem a conclusão, sem sombra de dúvida, de que todas as operações destacadas pela acusação (em amostragem) possuíam os elementos que compõem o ilícito de manipulação de preços, na medida em que acabaram por incluir operações de estratégias diversas[6].

Como considerou o Diretor Relator, algumas das operações, dadas as suas características, não tinham como objetivo primordial manipular o preço dos ativos. No entanto, em outras operações, o intuito manipulador restou suficientemente evidenciado, assim como os demais elementos do tipo ilícito.

À luz do exposto, e diante da dificuldade de se diferenciar as operações lícitas daquelas em que havia o nítido intuito de manipular os preços dos ativos negociados, os julgadores decidiram que a fixação da multa pecuniária não poderia ser determinada em função da vantagem econômica auferida ou do prejuízo evitado[7], seguindo o posicionamento firmado pelo Colegiado[8].

Entretanto, no PAS CVM SEI nº 19957.005452/2016-82, o Diretor Relator considerou que situação parecia distinta da dos demais processos julgados na mesma data. Entendeu, nesse caso, que a acusação demonstrou que todas as operações realizadas pelo acusado caracterizavam, efetivamente, o ilícito de manipulação de preços. Segundo ele, o padrão de atuação do acusado se mostrou mais regular, mediante a inserção de sucessivas ordens, envolvendo um único ativo e em um mesmo pregão, seguido do rápido cancelamento das ordens artificiais após a consumação do negócio ao preço-alvo desejado[9]. Por essa razão a pena foi fixada levando-se em conta a vantagem econômica obtida, em contraste às penalidades aplicadas nos processos acima citados[10].

Antes de junho de 2020, o Colegiado apreciou, em 2018 e 2019[11], processos administrativos sancionadores envolvendo as práticas de layering e spoofing, decidindo, também naquelas ocasiões, pela aplicação de multas pecuniárias aos acusados, considerando a gravidade das infrações cometidas.

Em suma, ao que se pode depreender das decisões acima referidas, o Colegiado da CVM reconhece que as duas práticas são enquadradas no tipo ilícito de manipulação de preços, definido pela ICVM nº 08/79, demandando maior rigor na sua apuração e sanção.

Luiza Rangel de Moraes, sócia (lrangel@bocater.com.br)
Beatriz Sampaio G. de Lucena, advogada (blucena@bocater.com.br)

  1. PAS CVM SEI nº 19957.007543/2019-03,PAS CVM SEI nº 19957.000592/2019-15, PAS CVM SEI nº 19957.007809/2018-29 e PAS CVM SEI nº 19957.005452/2016-82.
  2. Item II, alínea ‘b’ da Instrução CVM nº 08/79: “b) manipulação de preçosno mercado de valores mobiliários, a utilização de qualquer processo ou artifício destinado, direta ou indiretamente, a elevar, manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário, induzindo, terceiros à sua compra e venda (…)
  3. Item 40 do Voto do Relator no PAS CVM SEI nº 19957.007543/2019-03; Item 42 do Voto do Relator no PAS CVM SEI nº 19957.000592/2019-15 e Item 36 do Voto do Relator no PAS CVM SEI nº 19957.007809/2018-29.
  4. Item 38 do Voto do Relator do PAS CVM SEI nº 19957.007543/2019-03, Item 41 do Voto do Relator no PAS CVM SEI nº 19957.000592/2019-15, Item 35 do Voto do Relator no PAS CVM nº SEI 19957.007809/2018-29 e Item 29 do PAS CVM SEI nº 19957.005452/2016-82.
  5. Item 39 do Voto do Relator do PAS CVM SEI nº 19957.007543/2019-03, Item 42 do Voto do Relator no PAS CVM SEI nº 19957.000592/2019-15, Item 36 do Voto do Relator no PAS CVM nº 19957.007809/2018-29. Vide item 9 do Relatório do PAS CVM SEI nº SEI 19957.006019/2018-26.
  6. Itens 46 e 48 do Voto do Relator do PAS CVM SEI nº 19957.007543/2019-03, Itens 49 e 51 do Voto do Relator no PAS CVM SEI nº 19957.000592/2019-15, Itens 43 e 45 do Voto do Relator no PAS CVM nº 19957.007809/2018-29.
  7. Itens 50, 51, 52, 95, 96 e 97 do Voto do Relator do PAS CVM SEI nº 19957.007543/2019-03, Itens 53, 54, 55, 100, 101 e 102 do Voto do Relator no PAS CVM SEI nº 19957.000592/2019-15, Itens 47, 48, 49,  94, 95 e 96 do Voto do Relator no PAS CVM nº 19957.007809/2018-29.
  8. “25. Nos dois primeiros casos em que o Colegiado analisou acusações de manipulação baseada em ofertas, entendeu-se que a totalidade das estratégias apontadas pela acusação consistiu em manipulação de preço, prática vedada pela Instrução CVM nº 08/1979. Nos precedentes, decidiu-se pela aplicação de multa pecuniária calculada em função do benefício auferido pela prática das condutas. O benefício, por sua vez, foi calculado em ambos os casos pela diferença de preços entre a melhor oferta antes de sua atuação e o preço do negócio efetivamente executado multiplicada pela quantidade de ativos envolvidos no negócio.” PAS CVM SEI nº 19957.005452/2016-82.
  9. Itens 30, 31, 32 e 33 do Voto do Relator no PAS CVM SEI nº 19957.005452/2016-82.
  10. Itens 71, 72 e 73 do Voto do Relator no PAS CVM SEI nº 19957.005452/2016-82.
  11. PAS CVM SEI nº 19957.005977/2016-18 (RJ2016-7192), julgado em 13 de março de 2018 e PAS CVM SEI nº 19957.006019/2018-26, julgado em 1º de outubro de 2019.

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