Em 1º de julho, foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto nº 10.411, de 30 de junho, que regulamenta a Análise de Impacto Regulatório (AIR) para as propostas de edição e de alteração de atos normativos, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas.
Apesar de não se tratar de conceito novo[1], a AIR passou a ter aplicação ampla e obrigatória com a publicação da Lei Geral das Agências Reguladoras (Lei nº 13.848/2019) e da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019). Entretanto, a efetiva implementação da AIR na rotina dos órgãos federais dependia da edição de regulamento específico pelo Governo Federal, o que foi agora suprido com a publicação do Decreto 10.411/2020.
De forma resumida, a “edição, a alteração ou a revogação de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos” deverá ser “precedida de AIR”, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico.
O parágrafo único do art. 5º da Lei nº 13.874/2019 dispõe que o “regulamento disporá (…) sobre o conteúdo, a metodologia da análise de impacto regulatório, os quesitos mínimos a serem objeto de exame, as hipóteses em que será obrigatória sua realização e as hipóteses em que poderá ser dispensada.” Em outras palavras, podem existir casos de dispensa da AIR, conforme seja estabelecido pelo decreto regulamentador (no caso, o Decreto 10.411/2020).
As entidades fechadas de previdência complementar (EFPC) são agentes econômicos lato sensu e destinatárias de intensa regulação. Estamos nos referindo às regras editadas pelo Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC), pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar (PREVIC) e pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).
O Decreto 10.411/2020 trouxe três hipóteses de interesse:
(i) a regra geral de que “a edição, a alteração ou a revogação de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, por órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional será precedida de AIR” (art. 3º, caput);
(ii) a regra excepcional em que a AIR será dispensada (art. 3º, § 2º[2]); e
(iii) a regra, também, excepcional em que a AIR poderá ser dispensada (art. 4º), desde que haja decisão fundamentada para a dispensa.
Dentre as possibilidades de dispensa fundamentada da AIR, destaca-se previsão específica para o segmento de previdência complementar. Confira-se:
Art. 4º A AIR poderá ser dispensada, desde que haja decisão fundamentada do órgão ou da entidade competente, nas hipóteses de:(…)
V – ato normativo que vise a liquidez, solvência ou higidez:
- a) dos mercados de seguro, de resseguro, de capitalização e de previdência complementar;
- b) dos mercados financeiros, de capitais e de câmbio; ou
- c) dos sistemas de pagamentos;
(…) (Grifou-se.)
A previsão de faculdade de dispensa de AIR para a regulação para preservar a “liquidez, solvência ou higidez” da previdência complementar, mesmo nos casos em que não haja urgência, não nos parece ser a melhor solução. É bom lembrar que estamos no âmbito da previdência privada e facultativa, nos estritos temos contidos no art. 202 da Constituição Federal, portanto deve haver um incentivo para os agentes econômicos ingressarem nesse ambiente de seguridade sem as incertezas de uma regulação exagerada, custosa ou inadequada.
É preciso ter claro que, para a previdência complementar, o Decreto 10.411/2020 não determinou a dispensa de AIR, mas estabeleceu uma faculdade, que precisa estar fundamentada em ato administrativo vinculado (i.e., ato com cuidadosa fundamentação) e, portanto, passível de controle pelo judicial review.
Está fundamentado em firme jurisprudência e na antiga doutrina que os atos administrativos vinculados têm a sua validade subordinada à indicação clara, objetiva e impessoal dos pressupostos de fato e de direito que motivaram a decisão da Administração. Além desses requisitos, faz-se necessário, ainda, que a motivação do ato se verifique na realidade, de forma que a menção a motivos falsos ou incoerentes vicia irremediavelmente o ato praticado.
Quanto ao tema, vale retomar a preciosa lição sobre atos administrativos com motivação vinculada de Diogo Figueiredo de Moreira Neto[3]:
O motivo poderá ser, todavia, tanto um fato, como um direito ou uma conjugação de ambos, neste caso, um motivo composto – fático e jurídico – desde que preexistentes ao ato administrativo e suficientes para sua justificação e suporte.
A distinção ganha suma importância se a lei prevê situação de fato e de direito como determinante da ação, pois o administrador público não poderá praticar o ato administrativo previsto, constituindo um motivo vinculado; (…)
Formula-se, então, o conceito: motivo é o pressuposto de fato e de direito que determina ou possibilita a edição do ato administrativo.
Não há dúvidas de que os requisitos acima referidos devem estar, necessariamente, presentes no ato administrativo que fundamente a dispensa de realização de AIR nos termos do art. 4º, V, “a” do Decreto 10.411/2020, acima transcrito, inadmitindo-se fundamentação genérica ou insubsistente.
Deve-se ter claro que a AIR é um dos principais instrumentos voltados à melhoria da qualidade regulatória, propiciando maior eficiência e coerência em tais decisões. Ademais, o relatório da AIR poderá ser objeto de participação social, denotando maior transparência e engajamento dos agentes econômicos envolvidos (nesse caso, as EFPC, os patrocinadores, as entidades representativas de participantes etc.).
Estamos certos que prevalecerão as boas práticas de gestão do CNPC, PREVIC e CMN para que utilizem da faculdade de dispensar a AIR em casos muito específicos e residuais. A regra deve ser que a AIR preceda a regulação da previdência complementar, admitindo-se, excepcionalmente, a regulação sem a análise de impacto, desde que suportada em cuidadosa motivação.
O Decreto 10.411/2020 entrou em vigor na data de sua publicação, porém a obrigatoriedade da AIR deverá ser mandatória a partir de 15 de abril de 2021 para os órgãos do Ministério da Economia e suas autarquias, que incluem o CNPC, a PREVIC e o CMN.
Flavio Martins Rodrigues, sócio sênior (frodrigues@bocater.com.br)
Rebecca Molina Ferreto, advogada (rferreto@bocater.com.br)
Gabriel Augusto Cintra Leite, advogado (gleite@bocater.com.br)
- O Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão e Regulação (PRO-REG), instituído em 2007 pelo Decreto Federal n.º 6.062 é um marco importante para a discussão da AIR no Brasil, muito embora não tenha previsto a obrigatoriedade do instituto.
- Confira-se o dispositivo:
Art.3º A edição, a alteração ou a revogação de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, por órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional será precedida de AIR.
(…)
- 2º O disposto no caputnão se aplica aos atos normativos:
I – de natureza administrativa, cujos efeitos sejam restritos ao âmbito interno do órgão ou da entidade;
II – de efeitos concretos, destinados a disciplinar situação específica, cujos destinatários sejam individualizados;
III – que disponham sobre execução orçamentária e financeira;
iV – que disponham estritamente sobre política cambial e monetária;
V – que disponham sobre segurança nacional; e
VI – que visem a consolidar outras normas sobre matérias específicas, sem alteração de mérito.
[3] MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Curso de direito administrativo. 16 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014. pg. 154.