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Reequilíbrio econômico-financeiro para serviços contínuos no cenário da Covid-19

O estado de calamidade pública e de emergência da saúde ocasionados pela pandemia da Covid-19 exigiram dos entes federativos a adoção de providências extremas para contenção do vírus[1]. Muitas dessas medidas afetaram diretamente relações preexistentes firmadas entre o Poder Público e os particulares, especialmente a execução de contratos administrativos de serviços continuados à Administração Pública[2].

Isso porque, a determinação de restrição de atividades e circulação de pessoas para enfrentamento do coronavírus[3] trouxe impactos na abertura de estabelecimentos e na locomoção de trabalhadores, o que, consequentemente, refletiu na indisponibilidade de insumos e redução de mão de obra necessárias à efetiva prestação de serviços. Nesse sentido, tornou-se mais custoso – ou até mesmo inviável – dar continuidade ao cumprimento das obrigações contratuais pelas empresas contratadas pela Administração.

Diante desse contexto, o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato é medida que pode ser pleiteada a fim de restabelecer a relação de equivalência entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para justa remuneração do serviço, de modo a assegurar a efetividade da garantia constitucional de manutenção das condições iniciais do contrato, nos termos do art. 37, XXI da Carta Magna[4].

O instrumento encontra previsão no art. 65, inciso II, alínea ‘d’ da Lei nº 8.666/93, que regulamenta o dispositivo constitucional. De acordo com o texto legal, o reequilíbrio pode ser invocado mediante acordo entre as partes, na ocorrência de “fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual”.

A rigor, é possível afirmar que a crise mundial da Covid-19 pode ser enquadrada como motivo de força maior ou caso fortuito[5] apto a ensejar a revisão do instrumento contratual. Entretanto, deve-se ter em vista que é necessário, ainda, a análise dos impactos econômico-financeiros oriundos da pandemia no contrato, para fins do reequilíbrio previsto na Lei.

Desta feita, havendo a demonstração de uma relação de causa e efeito entre os fatos – pandemia e desequilíbrio econômico do contrato – a Administração Pública poderá ser demandada a se responsabilizar pelo reequilíbrio econômico-financeiro do contrato.

A grande problemática, quando se trata de serviços contínuos[6], notadamente os que envolvem contratos de terceirização, com grande mobilização de mão-de-obra, diz respeito à possibilidade de pagamento das empresas que se encontram impossibilitadas de prestar plenamente suas atividades por fatos alheios às suas vontades.

Considerando que inexiste culpa do contratado na interrupção da prestação das atividades, que ocorre por motivo de força maior ou caso fortuito decorrente da pandemia da Covid-19, e que inexiste qualquer pactuação da divisão do risco em sentido diverso, tratando-se de álea econômica extraordinária, é possível constatar ser devido o pagamento.

Nessa linha, é necessário destacar que cabe ao particular contratado arcar com todos os encargos trabalhistas do empregado terceirizado, apesar da interrupção da prestação dos serviços contínuos. Esse foi o entendimento da Advocacia-Geral da União em Parecer que reconheceu a possibilidade de dispensa temporária dos servidores terceirizados sob a manutenção de suas remunerações, sendo cabíveis, no entanto, eventuais descontos referentes aos auxílios transporte e alimentação.

Quanto ao pagamento à empresa prestadora de serviços contratada, cabe à Administração Pública avaliar medidas para reduzir os impactos da atual situação, como (i) a antecipação de férias, concessão de férias individuais ou decretação de férias coletivas; (ii) a fixação de regime de jornada de trabalho em turnos alternados de revezamento; e (iii) a redução da jornada de trabalho com a criação de banco de horas para posterior compensação das horas não trabalhadas[7].

Tais medidas devem também ser consideradas espontaneamente pela contratada como aptas a mitigar o prejuízo à execução do contrato, numa ação consensual, aumentando as chances de se chegar a um entendimento sobre os parâmetros a serem adotados no reequilíbrio econômico-financeiro.

Finalmente, cabe pontuar que o pedido de reequilíbrio econômico-financeiro não depende de previsão no edital da licitação, podendo ser concedido a qualquer momento no curso do contrato, desde que justificado e evidente o desequilíbrio contratual que dificulta a execução do instrumento, nos termos da Lei.

A equipe de Direito Público abordará com mais detalhes, nos próximos dias, as demais inovações e alterações da legislação relacionadas ao coronavírus e permanece à disposição para eventuais esclarecimentos adicionais.

Equipe Bocater (contato@bocater.com.br)

[1] Em 22.04.2020, nosso time publicou informativo abordando as principais normas editadas no campo do Direito Administrativo (saiba mais aqui). Abordamos, também, em nosso último comunicado, a nova modalidade de contratação emergencial por dispensa de licitação instituída pela Lei nº 13.97/2020 para a aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública (saiba mais aqui).

[2] Não há na Lei nº 8.666/93 uma definição de “serviços contínuos”. A Instrução Normativa nº 5/2017 do antigo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão conceitua, em seu art. 15, esses serviços como aqueles que, “pela sua essencialidade, visam a atender à necessidade pública de forma permanente e contínua, por mais de um exercício financeiro, assegurando a integridade do patrimônio público ou o funcionamento das atividades finalísticas do órgão ou entidade, de modo que sua interrupção possa comprometer a prestação de um serviço público ou o cumprimento da missão institucional”.

[3] Medidas estabelecidas pela Lei nº 13.379/2020.

[4] Estabelece o art. 37, XXI da Constituição Federal o seguinte: “art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(…)

XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

[5]. O art. 501 da CLT conceitua o motivo de força maior da seguinte forma: Art. 501. Entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.

  • 1º A imprevidência do empregador exclui a razão de força maior.
  • 2º À ocorrência do motivo de força maior que não afetar substancialmente, nem for suscetível de afetar, em tais condições, a situação econômica e financeira da empresa, não se aplicam as restrições desta Lei referentes ao disposto neste Capítulo.

 Já no Código Civil, a força maior é prevista ao lado do caso fortuito, no art. 393:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir.

[6] O serviço contínuo é caracterizado pela sua essencialidade, que tem por finalidade o atendimento à necessidade pública, de forma rotineira e permanente. Se interrompidos, poderão comprometer a prestação de um serviço público ou o cumprimento da missão institucional. Por esse motivo, considerando a necessidade permanente e contínua do serviço, é que o art. 57, II, da Lei nº 8.666/93 prevê a possibilidade de prorrogação do prazo de vigência desses contratos por até 60 (sessenta) meses, desvinculando a adstrição à vigência dos contratos aos respectivos créditos orçamentários, visando à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração. O § 2º do mesmo art. 57 estabelece, ainda, que a prorrogação de prazo deverá ser justificada e previamente autorizada por autoridade competente.

[7] Essas são as recomendações do Governo Federal aos órgãos e entidades da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, constantes no Portal de Compras Governamentais. Disponível em:

https://www.comprasgovernamentais.gov.br/index.php/noticias/1270-recomendacoes-covid-19-servicos-terceirizados

Autores

Bocater, Camargo, Costa e Silva

Área de atuação

Administrativo

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