Publicações

Reequilíbrio econômico-financeiro em contratos de longo prazo no cenário da Covid-19

Diante da pandemia da Covid-19, o Poder Público, com o intuito de dispor sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência sanitária, elencou, de maneira exemplificativa, no art. 3º da Lei nº. 13.979/20, as ações passíveis de serem implementadas pelos entes federativos para contenção da disseminação do vírus. Dentre tais medidas, a lei permite a adoção do isolamento, da quarentena e a restrição de entradas e saídas do país, assim como da locomoção interestadual e intermunicipal por rodovias, portos ou aeroportos.

 

Essas determinações, por restringirem a circulação de pessoas, o funcionamento de estabelecimentos e a prestação de serviços não essenciais[1], são capazes de gerar efeitos negativos na economia. As medidas de prevenção ao contágio acarretam impactos diferenciados sobre os contratos de longo prazo firmados entre a Administração Pública e o setor privado, como as concessões de serviço público e as parcerias público-privadas, principalmente aqueles relacionados ao transporte público.

 

Isso se deve ao fato de que a remuneração do parceiro privado, nesses casos, é atrelada à demanda de usuários pelo serviço e, por consequência, o cumprimento de suas obrigações contratuais está condicionado à sua disponibilidade de caixa, majoritariamente composta pelas receitas oriundas das tarifas.  Para além disso, os recursos públicos disponíveis para realização de aportes e pagamentos, que poderiam suprir eventuais lacunas financeiras resultantes da redução da arrecadação de tarifas, são limitados e, no momento, estão comprometidos com a implementação de medidas de enfrentamento ao vírus.

 

Frente a este cenário de extrema onerosidade para cumprimento, por ambas as partes, das obrigações contratadas, a alternativa usualmente recomendada consiste na elaboração de um pleito de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Tal instrumento, previsto no art. 37, inciso XXI da Constituição Federal[2] e disciplinado, tradicionalmente, pelo art. 65, inciso II, alínea “d” da Lei nº. 8.666/93[3] , possui tratamento diferenciado no âmbito das concessões e parcerias público privadas em razão da dinâmica contratual inerente a estes modelos.

 

No caso das concessões de serviços públicos, especialmente naqueles contratos em que não há uma matriz de risco explícita[4], a doutrina e a jurisprudência sustentam que o artigo 2º, inciso II[5] da Lei nº. 8.987/95, estabelece que a exploração do serviço será feita por “conta e risco do particular”.

 

No entanto, este dispositivo não afasta a necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do empreendimento[6] nem isenta o Poder Público do dever de internalizar determinados riscos. Isso porque, a referida previsão legal aloca ao Concessionário a integralidade da álea[7] empresarial ordinária, não abrangendo, portanto, as hipóteses de álea extraordinária que, usualmente, são atribuídas ao Poder Concedente em razão de sua imprevisibilidade.

 

Já no caso das parcerias público-privadas, a Lei nº. 11.079/04 prevê no art. 4º, inciso VI[8] combinado com o art. 5º, inciso III[9], a obrigatoriedade de estabelecimento de uma matriz de risco explícita em que possíveis eventos futuros e incertos à consecução do contrato serão distribuídos objetivamente entre a Administração Pública e o parceiro privado.

 

Desse modo, caso uma hipótese ali prevista venha a se concretizar, o encargo de internalização de seus custos caberá ao agente que assumiu contratualmente tal responsabilidade. Assim, riscos que, tradicionalmente, seriam atribuídos ao Poder Público em razão de seu enquadramento enquanto álea extraordinária, podem ser transferidos ao Concessionário por mera negociação das partes.

 

No entanto, mesmo com o estímulo a que possíveis riscos sejam previstos inicialmente e assim, precificados ex ante, a fim de que se evite um pleito de reequilíbrio econômico-financeiro futuro, deve-se reconhecer que nem sempre isso será possível conforme se verifica no cenário atual. Isso porque, as matrizes de risco desses contratos são naturalmente incompletas, e, a pandemia do coronavírus, configura um evento completamente imprevisível, enquadrando-se, portanto, em uma hipótese de força maior ou caso fortuito. Dessa forma, seja por essa natural limitação dos contratos ou por conta da solução extraível da construção doutrinária de álea extraordinária, há fundamento para a elaboração de um pleito de reequilíbrio econômico-financeiro desses contratos[10].

 

Ainda que o pleito seja cabível teoricamente, o que dependerá da análise individualizada a fim de se demonstrar o nexo causal entre a pandemia e a inviabilidade de cumprimento da totalidade das prestações, este instrumento não será capaz de, no curto prazo, garantir o equilíbrio financeiro e, portanto, a liquidez necessária à continuidade da prestação do serviço público.

 

Tal constatação advém do fato de que esses procedimentos são excessivamente demorados[11], bem como da impossibilidade de realização, nesse momento, de um reequilíbrio econômico-financeiro completo em razão da inviabilidade de mensuração de todos os impactos decorrentes da pandemia e das medidas tomadas para seu enfrentamento.

 

Desse modo, apenas em um momento futuro, quando a pandemia e seus respectivos efeitos forem superados e os serviços forem normalizados é que será possível a quantificação dos prejuízos e o reestabelecimento da Taxa Interna de Retorno do empreendimento, e, portanto, a garantia da rentabilidade esperada pelo parceiro privado quando da elaboração de seu plano de negócios.

 

Até lá, com o intuito de que se garanta a liquidez do Concessionário, outras medidas devem ser adotadas tais como: (i) a concessão de subsídios; (ii) o pagamento de parcelas já vencidas e inadimplidas por parte do Poder Público; (iii) a obtenção de empréstimos em instituições públicas de financiamento; (iv) o recurso a linhas de crédito de organismos multilaterais; (v) a instituição de um regime de cogestão pela iniciativa privada e pelo setor público para que seja possível a realização de aportes de recursos, e (vi) a definição, por parte dos órgãos reguladores setoriais, daquelas obrigações que poderão ser suspensas ou mitigadas no cenário atual[12].

 

Contudo, para que essas medidas possam ser implementadas, tanto o Poder Concedente quanto o Concessionário devem adotar uma postura consensual na interpretação das cláusulas contratuais e das próprias previsões legais de modo a que se garanta a cooperação de todos os agentes em prol da manutenção dos contratos de longo prazo e do atendimento das demandas dos usuários.

 

A equipe de Direito Público abordará com mais detalhes, nos próximos dias, as demais inovações e alterações da legislação relacionadas ao coronavírus e permanece à disposição para eventuais esclarecimentos adicionais.

Equipe Bocater (contato@bocater.com.br)

 

[1] Os serviços públicos e as atividades essenciais que deverão ser resguardados mesmo diante da adoção das medidas de enfrentamento do coronavírus foram listadas nos Decretos nº. 10.282/2020 e 10.329/2020.

 

[2] CRFB/88 – Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:  XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

 

[3] Lei 8.666/93 – Art. 65.  Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: II – por acordo das partes: d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.

 

[4] Nos contratos firmados com base na Lei nº. 8.987/95, a matriz de risco, instrumento por meio do qual há a repartição dos custos de possíveis riscos entre o Poder Público e o parceiro privado pode ser prevista de duas formas: (i) explicitamente, e, portanto, estabelecida contratualmente com base na autonomia da vontade do Concessionário e na capacidade negocial do Poder Concedente, ou (ii) implicitamente, e, nesses casos em razão da omissão do contrato, cabe à lei alocar o risco entre os agentes, tal como é a regra nos contratos regidos pela Lei 8.666/93. Portanto, nos contratos de concessão comum, a previsão de uma matriz de risco explicita e, consequentemente, a repartição objetiva de riscos entre as partes, é facultativa.

 

[5] Lei 8.987/95 – Art. 2º Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se: II – concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado.

 

[6] Segundo o art. 10 da Lei nº. 8.987/95, sempre que forem atendidas as condições do contrato, considera-se mantido seu equilíbrio econômico-financeiro.

 

[7] O termo jurídico “álea” pode ser entendido como o risco que as partes assumem ao celebrar um contrato.

 

[8] Lei 11.079/04 – Art. 4º Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: VI – repartição objetiva de riscos entre as partes.

 

[9] Lei 11.079/04 – Art. 5º As cláusulas dos contratos de parceria público-privada atenderão ao disposto no art. 23 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, no que couber, devendo também prever: III – a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária.

 

[10] Nesse sentido, o Parecer nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU concluiu que pandemia do Coronavírus configura força maior ou caso fortuito, caracterizando álea extraordinária para fins de aplicação da teoria da imprevisão a justificar o reequilíbrio de contratos de concessão de infraestrutura de transportes, desde que atendidos os demais requisitos indicados.

 

[11] A demora na obtenção do reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão e PPP está usualmente atrelada às dificuldades de definição dos parâmetros do reequilíbrio, à possibilidade de intervenção dos órgãos de controle e às dificuldades de análise dos respectivos pleitos por parte de agências reguladoras com distintos graus de institucionalidade. Um exemplo da demora para realização da recomposição do equilíbrio econômico da concessão foi o pleito apresentado pela Concessionária do Aeroporto de Brasília, em 29.12.2015, junto à ANAC, autuado sob o nº. 00058.000678/2016-01, o qual somente foi decidido em 29.04.2020.

 

[12] Nesses casos, a entidade reguladora poderá, por exemplo, flexibilizar tanto o dever de realização de investimentos por parte do Concessionário, quanto a obrigatoriedade de pagamento das outorgas.

 

Autores

Bocater, Camargo, Costa e Silva

Área de atuação

Administrativo

Categorias