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CRSFN reconhece a possibilidade de prescrição intercorrente em fase pré-processual

Em acórdão publicado no Boletim de Serviço Eletrônico em 08 de setembro, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), por maioria de votos, alterou o seu posicionamento acerca do marco inicial para a contagem do prazo prescricional de três anos. O órgão passou, agora, a admitir a configuração da prescrição intercorrente também na fase investigatória, quando o procedimento administrativo permanecer paralisado por prazo igual ou superior a três anos.

A decisão foi proferida no Recurso Voluntário nº 14460 contra julgamento da Comissão de Valores Mobiliários (CVM)[1], que decidiu pela aplicação das penalidades de multa pecuniária, inabilitação temporária e advertência aos acusados em virtude da caracterização das seguintes violações: abuso do poder de controle, irregularidades nas demonstrações financeiras, nas operações de negociação de ações pela própria companhia, nos trabalhos conduzidos pela auditoria independente, ausência de envio de informações periódicas, a prática de atos de liberalidade e falta de diligência pelos administradores.

Com a exceção do voto do Conselheiro Relator e do voto do Conselheiro Sergio Cipriano dos Santos[2], que sustentaram a manutenção do entendimento atual adotado pelo CRSFN[3], os outros Conselheiros entenderam ser possível o reconhecimento da prescrição intercorrente ainda em fase investigatória com base em argumentos diversos.

Entretanto, embora reconhecesse a ocorrência da prescrição intercorrente no processo sob julgamento, o CRSFN posicionou-se no sentido de que a prescrição não deveria ser acolhida em segunda instância, na medida em que a CVM pautou a sua atuação pelo posicionamento consolidado à época[4].

I. Principais Argumentos a Favor da Mudança de Entendimento

O primeiro argumento diz respeito à leitura que deve ser feita do art. 1º, §1º da Lei nº 9.873, de 23 de novembro de 1999 (Lei nº 9.873/99), que estabelece a incidência de prescrição ao procedimento administrativo paralisado por mais de  três anos, pendente de despacho ou julgamento[5]. A dúvida consistia em saber se o termo ‘procedimento administrativo’ abarcaria tanto a fase investigatória quanto a fase sancionatória, com a instauração do processo administrativo sancionador.

Como forma de defender o novo entendimento, invocou-se o item 3 da Exposição de Motivos da referida lei: “Neste sentido, com as regras que ora são apresentadas a Vossa Excelência, será possível promover a estabilidade das relações jurídicas, na medida em que passam a ser previstos prazos prescricionais que irão delimitar a atuação do Estado na apuração e repressão de ilícitos administrativos.”

Logo, ao haver expressa menção ao processo de apuração, o entendimento de que a prescrição intercorrente também se aplicaria à fase investigatória ganhou força. Aliás, tal posicionamento está explícito no voto da Conselheira Presidente, Ana Maria Melo Netto Oliveira, ao afirmar que a escolha dos vocábulos pelo legislador não foi acidental[6], e que teria sido corroborado pelo art. 5º da própria lei, que explicitamente utiliza os termos ‘processo’ e ‘procedimento’, demonstrando que o uso de um e outro pelo legislador foi consciente e intencional[7]. Quando o legislador quis distinguir, assim o fez.

Mais adiante, a título de exemplo, mencionou-se que a Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, distinguiu as espécies de procedimento e processo administrativo, mas, na redação do seu art. 46, §3º[8], determinou a incidência da prescrição a qualquer procedimento administrativo que não observasse o lapso temporal. Portanto, não haveria dúvidas de que foi o intuito do legislador prever a incidência da prescrição trienal em qualquer procedimento regulado naquela lei, tanto na fase inquisitorial quanto na fase processual[9].

Finalmente, caso fosse a intenção da lei limitar a ocorrência da prescrição trienal aos processos administrativos em sentido estrito, o legislador não teria utilizado os termos ‘despacho’ e ‘julgamento’. Novamente, a lei teria empregado expressões para reafirmar a orientação de que a prescrição trienal poderia ocorrer em qualquer fase[10].

Em segundo lugar, para o exame do caso, os Conselheiros fizeram uma análise dos princípios regedores da Administração Pública, dando especial ênfase aos princípios da legalidade e da eficiência. Em relação ao princípio da legalidade, salientou-se que a Administração Pública é obrigada a agir em conformidade com os ditames da lei, tendo a sua atuação vinculada às normas que regem o procedimento administrativo.

Em relação ao princípio da eficiência, destacou-se que sua finalidade é a busca pela realização das atribuições da Administração Pública, almejando a máxima presteza, rapidez, prontidão e qualidade, com vistas a melhorar, em última instância, o atendimento ao seu beneficiário final: os administrados. Consequentemente, a melhor interpretação do art. 1º, §1º da Lei nº 9.873/99 é aquela que esteja alinhada com o interesse público em geral, de ter padrões claros em relação à atuação da Administração Pública, combatendo a inércia administrativa[11]. Além do mais, não há dúvidas de que é dever do servidor público, ao tomar ciência de irregularidades, providenciar a sua apuração tempestivamente, obrigação esta, que, inclusive, consta de lei e do seu poder de polícia quando possuir o dever e as condições de agir[12].

E, mesmo que determinado servidor não possua competência para tal, isso não legitimaria a sua inércia, pois caberia a ele comunicar as autoridades competentes para providenciar as diligências destinadas à investigação dos fatos. De qualquer modo, o servidor estaria obrigado a agir[13]. Não haveria, portanto, como compatibilizar o princípio da eficiência com a interpretação que permita que processos investigatórios permanecessem paralisados por três anos ou mais.[14] Da análise do que foi exposto, resta claro que a intenção do legislador foi a de assegurar que o administrador impulsione quaisquer apurações que estiverem em andamento, independentemente do estágio em que se encontrarem[15].

Por fim, ao contrário do que a tese contrária pretendeu sustentar, o reconhecimento da prescrição intercorrente, ainda em fase de apuração, não implicaria em imposição de regime desfavorável à Administração Pública, com a redução do prazo de cinco anos para três. A prescrição ordinária e a trienal convivem simultaneamente, e o reconhecimento da última não afeta a primeira. A previsão da prescrição quinquenal impõe o exercício do poder punitivo decorrente do poder de polícia que é atribuído à autoridade administrativa, dentro de cinco anos; a prescrição intercorrente, a seu turno, trata da paralisação do procedimento de apuração ou do processo sancionador por período superior a três anos, que pode ser interrompido com a prática de atos de apuração que visem ao término do feito[16].

II. Superação do Entendimento Consolidado e a Modulação dos Efeitos do Acórdão

Tendo em vista que a decisão proferida modifica entendimento há muito tempo consolidado no CRSFN, segundo o qual a prescrição intercorrente somente incide após a instauração do processo administrativo, com a citação dos acusados, há necessidade de que a alteração de entendimento seja feita nos termos da lei, e os seus efeitos devem ser modulados, por se tratar de uma decisão administrativa cujo objetivo é fixar nova interpretação para o art. 1º, §1º da Lei nº 9.873/99. Desta forma, foram considerados aplicáveis ao caso os arts. 23[17] e 24[18] da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que preveem (i) a imposição de um regime de transição para a vigência da nova interpretação, de modo proporcional, eficiente, que impeça a ocorrência de prejuízos, e assegure a segurança jurídica e a confiança; e (ii) a vedação de que, com base na alteração de entendimento, as situações jurídicas consolidadas com base no regime anterior sejam declaradas inválidas.

A necessidade de um regime de transição busca afastar a insegurança jurídica que a aplicação imediata de nova interpretação pode gerar. Isso porque o novo entendimento impõe à Administração Pública o dever de monitorar o transcurso do prazo até a citação dos acusados e implica “um novo condicionamento do direito de punir” – a de que não haja a paralisação do procedimento administrativo por mais de três anos[19]. Inclusive, a obrigatoriedade de modulação consta de regra expressa contida no art. 927, §3º do Código de Processo Civil[20] (aplicável apenas subsidiariamente) prevendo, em seu §4º, que a modificação de tese pacificada deverá ser acompanhada da devida fundamentação, apta a justificar a superação do entendimento, como forma de resguardar os princípios da proteção, confiança e isonomia[21].

Por outro lado, não pode ser imediatamente aplicada a mais recente decisão do CRSFN envolvendo prescrição, em face da possibilidade de gerar instabilidade, insegurança jurídica e afetar o regular desenvolvimento da atividade da Administração Pública, mais especificamente dos órgãos de primeira instância, sustentados no entendimento consolidado do CRSFN, ao longo dos anos.

Caso assim não se entendesse, os órgãos encarregados da fiscalização teriam as suas atividades tumultuadas, sendo forçados a acelerar as investigações em andamento, ou seriam surpreendidos com a prescrição intercorrente em incontáveis casos, o que poderia gerar danos imensuráveis à sociedade como um todo[22]. Ainda que se tentasse argumentar que a decisão seria benéfica aos acusados, tal entendimento foi completamente afastado porque a Lei nº 9.873/99, não possuindo natureza penal, não se submete ao princípio da retroatividade da norma mais benéfica[23].

Na medida em que há um interesse público na adequada fiscalização, condução das investigações, dos processos sancionadores, e na punição de irregularidades praticadas contra o sistema financeiro nacional, muitas vezes lesivas à economia e ao mercado de capital nacionais, a modulação dos efeitos da decisão, com a consequente criação da regra de transição, em função de expresso mandamento legal, é medida que se impõe[24]:

“A nova interpretação do CRSFN acerca da incidência do art. 1º, §1º, da Lei nº 9.873/99 à etapa pré-processual se aplicará a processos em que se verificar, antes da citação dos acusados, intervalo igual ou superior a 3 anos entre a prática de atos subsequentes de movimentação processual, apenas quando o termo final da prescrição intercorrente, isto é, o dia em que se completarem os 3 anos de paralisação for posterior à data em que a publicação do acórdão que consubstanciou o novo entendimento do CRSFN tiver completado um ano.”

Adotado tal posicionamento, ficará a Administração Pública resguardada contra os efeitos da aplicação imediata da mudança de posicionamento, sendo-lhe concedido tempo suficiente para promover ajustes nos seus cronogramas, se reorganizar internamente, e adotar todas as diligências cabíveis[25], dando ampla divulgação à decisão mediante a expedição de ofícios, circulares e comunicações, tanto para os entes cuja sede recursal seja o CRSFN, quanto para os próprios regulados[26].

Luiza Rangel de Moraes, sócia (lrangel@bocater.com.br)
Beatriz Gonçalves de Lucena, advogada (blucena@bocater.com.br)

  1. Processo CVM nº IA 2011-2
  2. Item 50 do voto proferido pelo Conselheiro Sérgio Cipriano dos Santos.
  3. Item 33 do voto do Conselheiro Relator: “Concluindo meu Voto para essa etapa preliminar, reafirmo entendimento favorável pela jurisprudência histórica adotada pelo Conselho, e pela sua manutenção, vez que não identifico nos autos e em normas jurídicas que tratam do assunto elementos que demonstrem qualquer mutação jurídica ou alteração fática significativa que me levasse a reconsiderar minha posição sobre a matéria, e que permitiria a este Conselho virar entendimento até então pacificado.”
  4. Item 53 do voto proferido pelo Conselheiro Sérgio Cipriano dos Santos.
  5. Lei nº 8973/99: “Art. 1, §1º – § 1o  Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.”
  6. Item 8 do voto da Conselheira Presidente Ana Maria Melo Netto Oliveira.
  7. Lei nº 8.973/99: “Art. 5o  O disposto nesta Lei não se aplica às infrações de natureza funcional e aos processos e procedimentos de natureza tributária.”
  8. Lei nº 12.529/11: “Art. 46, § 3º Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de 3 (três) anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.”
  9. Item 14 do voto da Conselheira Presidente Ana Maria Melo Netto Oliveira.
  10. Item 21 do da Conselheira Presidente Ana Maria Melo Netto Oliveira.
  11. Item 39 do voto do Conselheiro Antônio Augusto de Sá Freire Filho.
  12. Lei 8.112/90: “Art. 116.  São deveres do servidor: (…)VI – levar as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ao conhecimento da autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, ao conhecimento de outra autoridade competente para apuração.” Itens 5 e 46 do voto do Conselheiro Antônio Augusto de Sá Freire Filho
  13. Itens 47 e 52 do voto do Conselheiro Antônio Augusto de Sá Freire Filho.
  14. Item 7 do voto vista.
  15. Item 15 do voto da Conselheira Presidente Ana Maria Melo Netto Oliveira.
  16. Itens 20 e 21 do voto proferido pelo Conselheiro Sérgio Cipriano dos Santos.
  17. Decreto-Lei nº 4.657/42:“Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.”
  18. Decreto-Lei nº 4.657/42: “Art. 24.  A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas. Parágrafo único.  Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.”
  19. Item 38 do voto da Conselheira Presidente Ana Maria Melo Netto Oliveira.
  20. Lei nº 13.105/15:Art. 927, § 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.”
  21. Lei nº 13.105/15:Art. 927, § 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.”
  22. Item 80 do voto da Conselheira Presidente Ana Maria Melo Netto Oliveira.
  23. Item 52 do voto da Conselheira Presidente Ana Maria Melo Netto Oliveira.
  24. Decreto nº 9.830/19:“Art. 4º  A decisão que decretar invalidação de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos observará o disposto no art. 2º e indicará, de modo expresso, as suas consequências jurídicas e administrativas. § 1º  A consideração das consequências jurídicas e administrativas é limitada aos fatos e fundamentos de mérito e jurídicos que se espera do decisor no exercício diligente de sua atuação. § 2º  A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta, consideradas as possíveis alternativas e observados os critérios de proporcionalidade e de razoabilidade. § 3º  Quando cabível, a decisão a que se refere o caput indicará, na modulação de seus efeitos, as condições para que a regularização ocorra de forma proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais.
  • 4º Na declaração de invalidade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos, o decisor poderá, consideradas as consequências jurídicas e administrativas da decisão para a administração pública e para o administrado:

I – restringir os efeitos da declaração; ou II – decidir que sua eficácia se iniciará em momento posteriormente definido. § 5º  A modulação dos efeitos da decisão buscará a mitigação dos ônus ou das perdas dos administrados ou da administração pública que sejam anormais ou excessivos em função das peculiaridades do caso.” “Art. 6º  A decisão administrativa que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado e impuser novo dever ou novo condicionamento de direito, preverá regime de transição, quando indispensável para que o novo dever ou o novo condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais. § 1º  A instituição do regime de transição será motivada na forma do disposto nos art. 2º, art. 3º ou art. 4º. § 2º  A motivação considerará as condições e o tempo necessário para o cumprimento proporcional, equânime e eficiente do novo dever ou do novo condicionamento de direito e os eventuais prejuízos aos interesses gerais. § 3º  Considera-se nova interpretação ou nova orientação aquela que altera o entendimento anterior consolidado.” “Art. 7º  Quando cabível, o regime de transição preverá: I – os órgãos e as entidades da administração pública e os terceiros destinatários; II – as medidas administrativas a serem adotadas para adequação à interpretação ou à nova orientação sobre norma de conteúdo indeterminado; e III – o prazo e o modo para que o novo dever ou novo condicionamento de direito seja cumprido.”

  1. Item 15 do voto do Conselheiro Pedro Frade de Andrade.
  2. Item 26 do voto da Conselheira Maria Rita de Carvalho Drummond.

Autores

Luiza Rangel de Moraes e Beatriz Gonçalves de Lucena

Área de atuação

Tributário

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